Existe em toda religião um núcleo de verdades incontestáveis, existe um momento de inserção no real e no social através de um conjunto de crenças que dá a uma determinada religião uma face e uma fisionomia próprias. Esse conjunto de crenças, porém, não surge do nada, mas é fruto de uma tradição que se formou e solidificou em torno de um centro e de um referente que pode ser a revelação de Deus, a experiência profunda de videntes, um evento miraculoso, uma história ou um mito revelado pelos próprios deuses.
Aldo Natale Terrin
[Antropologia e horizontes do sagrado: cultura e religiões. Trad. Euclides Luiz Calloni. - São Paulo: Paulus, 2004, p. 392.]
Os motivos que levam uma pessoa a assumir uma determinada religião são muitos. O mais comum é que, se uma pessoa nasce numa família de forte tradição religiosa, assuma, quando adulto, a mesma religião praticada pelos pais. Provavelmente a maioria dos crentes (entenda-se crente como o praticante de qualquer religião) se enquadra nessa categoria. Uma vez adquirido o hábito de praticar aquela religião que lhe foi legada pelos pais, não ocorrerá ao praticante questioná-la, tomando suas verdades como dados apriorísticos, verdades em si mesmas.
Entretanto, há outro grupo de pessoas que, por motivos diversos, resolvem buscar por si mesmas, por esforço próprio, uma religião à qual aderir. Neste caso, o percurso nem sempre é fácil. De fato afirmaria que é um percurso muito difícil e tortuoso. A primeira questão que este buscador terá que enfrentar é, sem dúvida, a mais difícil de responder: “Qual a religião verdadeira?” Aos que se lançam em busca de uma resposta para esta difícil indagação, porém, muitas vezes não ocorre a percepção de que há uma outra questão que antece a essa, qual seja: “Existe uma religião que possa ser denominada a verdadeira religião?”
Qualquer religião está ancorada em dois pilares: um de ordem sobrenatural e outro de ordem cultural. Quem se aventurar pelo fascinante mundo do estudo comparado das religiões, será inevitavelmente levado a concluir que o elemento sobrenatural é comum a todas as religiões. Quanto a esse aspecto, as religiões guardam entre si uma semelhança muito grande, podendo-se dizer que este é o elemento que as une. No entanto, como são diversas as culturas, são diversas as formas de revenciar o Sagrado, elemento basilar de todas as religões. E, por este motivo, as religiões divergem entre si. Isso posto, não é possível afirmar qual a religião verdadeira ou, nem mesmo, se há uma religião à qual possa ser imputado o rótulo de “a verdadeira religião”. Essa questão, portanto, não admite uma resposta genérica, só podendo ser respondida sob a perspectiva individual, a partir do sentido existencial que o crente atribui à religião.
Domvasco
terça-feira, 9 de junho de 2009
segunda-feira, 8 de junho de 2009
NOLI FORAS IRE...
Não saias fora de ti, mas volta para dentro de ti mesmo; a Verdade habita no coração do homem.
Santo Agostinho
[A verdadeira religião, 39,72]
Num de seus primeiros textos, escrito aos 36 anos, intitulado De vera religione, “A verdadeira religião”, Santo Agostinho afirma o imperativo de que o homem adentre o interior de si mesmo como forma de aceder à Verdade. Nesse texto está posta a fascinante dialética da interioridade agostiniana, resumida em três pressupostos: 1. o afastamento do mundo (não saias de ti); 2. o cultivo da introversão (volta para dentro de ti mesmo); 3. o salto para a transcendência de Deus (vai além de ti mesmo). [Santo Agostinho. A Verdadeira Religião; O cuidado devido aos mortos. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002. – (Patrística, 19), nota 22.]
A propósito, vale a pena citar na íntegra o parágrafo do texto no qual o bispo de Hipona expõe o seu projeto para o homem que anseia pela realização de seu ser transcendente. Diz ele: “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem. E se não encontrares senão a tua natureza sujeita a mudanças, vai além de ti mesmo. E, te ultrapassando, porém, não te esqueças que transcendes tua alma que raciocina. Portanto, dirige-te à fonte da própria luz da razão”. [A verdadeira religião, p. 98]
Na perspectiva agostiniana, Deus, embora transcendente, manifesta-se a partir da intimidade do próprio indivíduo. Isso quer dizer que somente vasculhando o âmago de si mesmo, penetrando sua mais recôndita intimidade, é que o homem poderá aceder à experiência de Deus. Daí porque o conhecimento de si mesmo impõe-se como condição sine qua non para o conhecimento de Deus. Qualquer possibilidade de transcendência, portanto, começa, necessariamente, por um processo de interiorização do homem, condição nem sempre aceita nos dias atuais, uma vez que tudo leva à superficialidade e à precipitação do indivíduo para fora de si mesmo.
Domvasco
Santo Agostinho
[A verdadeira religião, 39,72]
Num de seus primeiros textos, escrito aos 36 anos, intitulado De vera religione, “A verdadeira religião”, Santo Agostinho afirma o imperativo de que o homem adentre o interior de si mesmo como forma de aceder à Verdade. Nesse texto está posta a fascinante dialética da interioridade agostiniana, resumida em três pressupostos: 1. o afastamento do mundo (não saias de ti); 2. o cultivo da introversão (volta para dentro de ti mesmo); 3. o salto para a transcendência de Deus (vai além de ti mesmo). [Santo Agostinho. A Verdadeira Religião; O cuidado devido aos mortos. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002. – (Patrística, 19), nota 22.]
A propósito, vale a pena citar na íntegra o parágrafo do texto no qual o bispo de Hipona expõe o seu projeto para o homem que anseia pela realização de seu ser transcendente. Diz ele: “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem. E se não encontrares senão a tua natureza sujeita a mudanças, vai além de ti mesmo. E, te ultrapassando, porém, não te esqueças que transcendes tua alma que raciocina. Portanto, dirige-te à fonte da própria luz da razão”. [A verdadeira religião, p. 98]
Na perspectiva agostiniana, Deus, embora transcendente, manifesta-se a partir da intimidade do próprio indivíduo. Isso quer dizer que somente vasculhando o âmago de si mesmo, penetrando sua mais recôndita intimidade, é que o homem poderá aceder à experiência de Deus. Daí porque o conhecimento de si mesmo impõe-se como condição sine qua non para o conhecimento de Deus. Qualquer possibilidade de transcendência, portanto, começa, necessariamente, por um processo de interiorização do homem, condição nem sempre aceita nos dias atuais, uma vez que tudo leva à superficialidade e à precipitação do indivíduo para fora de si mesmo.
Domvasco
sábado, 6 de junho de 2009
NOSSA SENHORA DE MEDIUGÓRIE_2
O Sinal virá, vocês não devem se preocupar a respeito.
Mensagem de Nossa Senhora aos videntes
[Fonte: MEDIUGÓRIE: Convertam-se sem demora, p. 89.]
Sevila, 19 de junho 1575
A graça do Espírito Santo esteja sempre com vossa mercê.
Não tenho esquecido o favor que me fez vossa mercê em dar-me a imagem de Nossa Senhora, que certamente é muito bonita...
Santa Teresa de Jesus
[Excerto de uma Carta de Santa Teresa de Jesus enviada a D. Inés Nieto, residente em Madrid]
No sábado passado fiz, neste blog, a citação de uma mensagem de Nossa Senhora aos videntes de Mediugórie. Informei que voltaria a tratar do assunto. Ainda terei muito o que dizer sobre as aparições de Nossa Senhora a um grupode seis videntes que vem se registrando em Mediugórie, conforme os relatos, desde 25 de junho de 1981. O assunto permanece, ainda, envolto em muita polêmica. De minha parte, porém, a única coisa que posso afirmar, por enquanto, é que a devoção a Nossa Senhora Rainha da Paz - título pelo qual têm sido habitualmente tratadas as aparições da Virgem Maria em Mediugórie - tem estado envolta em acontecimentos de acentuado teor sincrônico. A propósito, quero apenas mencionar o que me ocorreu ainda esta manhã, quando, diante da imagem de Nossa Senhora Rainha da Paz, fiz uma indagação e obtive como resposta exatamente uma carta de Santa Teresa d'Ávila na qual ela se refere a um presente que recebera de uma amiga: "por coincidência", uma imagem de Nossa Senhora.
Claro que não se pode negar que coincidências existem. Mas igualmente não se pode negar que, às vezes, nos acontecem fatos coincidentes demais, a ponto de nos levar a concluir que considerá-los apenas frutos do acaso seria incorrer em um absurdo reducionismo. É por considerarmos essa natureza dos fatos que este blog foi intitulado Sincronicidade.
Domvasco
Mensagem de Nossa Senhora aos videntes
[Fonte: MEDIUGÓRIE: Convertam-se sem demora, p. 89.]
Sevila, 19 de junho 1575
A graça do Espírito Santo esteja sempre com vossa mercê.
Não tenho esquecido o favor que me fez vossa mercê em dar-me a imagem de Nossa Senhora, que certamente é muito bonita...
Santa Teresa de Jesus
[Excerto de uma Carta de Santa Teresa de Jesus enviada a D. Inés Nieto, residente em Madrid]
No sábado passado fiz, neste blog, a citação de uma mensagem de Nossa Senhora aos videntes de Mediugórie. Informei que voltaria a tratar do assunto. Ainda terei muito o que dizer sobre as aparições de Nossa Senhora a um grupode seis videntes que vem se registrando em Mediugórie, conforme os relatos, desde 25 de junho de 1981. O assunto permanece, ainda, envolto em muita polêmica. De minha parte, porém, a única coisa que posso afirmar, por enquanto, é que a devoção a Nossa Senhora Rainha da Paz - título pelo qual têm sido habitualmente tratadas as aparições da Virgem Maria em Mediugórie - tem estado envolta em acontecimentos de acentuado teor sincrônico. A propósito, quero apenas mencionar o que me ocorreu ainda esta manhã, quando, diante da imagem de Nossa Senhora Rainha da Paz, fiz uma indagação e obtive como resposta exatamente uma carta de Santa Teresa d'Ávila na qual ela se refere a um presente que recebera de uma amiga: "por coincidência", uma imagem de Nossa Senhora.
Claro que não se pode negar que coincidências existem. Mas igualmente não se pode negar que, às vezes, nos acontecem fatos coincidentes demais, a ponto de nos levar a concluir que considerá-los apenas frutos do acaso seria incorrer em um absurdo reducionismo. É por considerarmos essa natureza dos fatos que este blog foi intitulado Sincronicidade.
Domvasco
quinta-feira, 4 de junho de 2009
QUE MITO VOCÊ ESTÁ VIVENDO?
E Jung perguntou a si mesmo por qual mitologia ele estaria vivendo e decobriu que nada sabia. E então ele disse: "Fiz dessa a tarefa de todas as tarefas da minha vida: descobrir a mitologia pela qual eu estava vivendo".
Joseph Campbell
Todos nós, sem que o saibamos, estamos vivendo um mito. De acordo com a perspectiva da psicologia junguiana, as nossas experiências de vida são determinadas por padrões arquetípicos que jazem no fundo de nosso inconsciente coletivo. O inconsciente coletivo é nada mais nada menos que o reservatório de todas as experiências míticas vividas pela humanidade ao longo dos tempos. Assim, para cada indivíduo há determinados padrões míticos que determinam que tipo de experiências constituirão sua história de vida.
É preciso dizer que um mito não o mesmo que uma lenda. A lenda tem por objetivo apenas distrair, divertir, ajudar a passar o tempo. O mito, por sua vez, constitui um relato que tem objetivo dar conta de uma realidade que só pode ser expressa de forma simbólica. Um mito, porém, não é uma invenção proposital, fruto de alguma mente criativa. O mito é criado devido a um imperativo - o imperativo de narrar uma categoria de fatos que estão além da experiência comum do dia a dia mas que, no entanto, diz respeito a cada um de nós.
Alguns autores, entre os quais destacaríamos Jung e Joseph Campbell, este último um dos maiores, se não o maior, mitólogos do século XX, dedicaram sua vida ao estudo dos mitos e como eles repercutem na vida das pessoas.
A conclusão a que chegaram foi a mesma: cada um de nós, sem que disso nos demos conta, está executando suas ações do dia a dia ancorado em padrões míticos. Tomar consciência do mito que determina as ações da nossa vida é fundamental para que possamos ter uma existência mais consciente e sábia.
Você já parou para se perguntar que padrões míticos são atuantes em sua vida?
Domvasco
Joseph Campbell
Todos nós, sem que o saibamos, estamos vivendo um mito. De acordo com a perspectiva da psicologia junguiana, as nossas experiências de vida são determinadas por padrões arquetípicos que jazem no fundo de nosso inconsciente coletivo. O inconsciente coletivo é nada mais nada menos que o reservatório de todas as experiências míticas vividas pela humanidade ao longo dos tempos. Assim, para cada indivíduo há determinados padrões míticos que determinam que tipo de experiências constituirão sua história de vida.
É preciso dizer que um mito não o mesmo que uma lenda. A lenda tem por objetivo apenas distrair, divertir, ajudar a passar o tempo. O mito, por sua vez, constitui um relato que tem objetivo dar conta de uma realidade que só pode ser expressa de forma simbólica. Um mito, porém, não é uma invenção proposital, fruto de alguma mente criativa. O mito é criado devido a um imperativo - o imperativo de narrar uma categoria de fatos que estão além da experiência comum do dia a dia mas que, no entanto, diz respeito a cada um de nós.
Alguns autores, entre os quais destacaríamos Jung e Joseph Campbell, este último um dos maiores, se não o maior, mitólogos do século XX, dedicaram sua vida ao estudo dos mitos e como eles repercutem na vida das pessoas.
A conclusão a que chegaram foi a mesma: cada um de nós, sem que disso nos demos conta, está executando suas ações do dia a dia ancorado em padrões míticos. Tomar consciência do mito que determina as ações da nossa vida é fundamental para que possamos ter uma existência mais consciente e sábia.
Você já parou para se perguntar que padrões míticos são atuantes em sua vida?
Domvasco
sábado, 30 de maio de 2009
NOSSA SENHORA DE MEDIUGÓRIE_1
Brevemente escreverei neste blog sobre as aparições de Nossa Senhora em Mediugórie. Hoje gostaria de destacar apenas a mensagem abaixo, transmitida por Nossa Senhora Rainha da Paz aos videntes:
Queridos filhos, desejo convidá-los a , de hoje em diante, a viver uma nova vida. Queridos filhos, quero que compreendam que Deus, no seu plano de salvação para a humanidade, escolheu cada um de vocês. Vocês não conseguem entender o quanto é grande a pessoa de vocês no projeto de Deus. Por isso, queridos filhos, rezem a fim de que, na oração, compreendam como devem agir daqui para a fente, segundo o plano de Deus. Eu estou com vocês, para que possam realizar tudo.
Futuramente escreverei sobre o poder e veracidade dessa promessa.
Domvasco
Queridos filhos, desejo convidá-los a , de hoje em diante, a viver uma nova vida. Queridos filhos, quero que compreendam que Deus, no seu plano de salvação para a humanidade, escolheu cada um de vocês. Vocês não conseguem entender o quanto é grande a pessoa de vocês no projeto de Deus. Por isso, queridos filhos, rezem a fim de que, na oração, compreendam como devem agir daqui para a fente, segundo o plano de Deus. Eu estou com vocês, para que possam realizar tudo.
Futuramente escreverei sobre o poder e veracidade dessa promessa.
Domvasco
sexta-feira, 24 de abril de 2009
A DIFÍCIL EXPRESSÃO DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
O que o profeta ouve e vê é como que ‘o supra-sumo’ da teologia simbólica... Mas o mais importante ainda é ser tocado internamente por Deus, sem palavras ou imagens. Pois é nesse encontro pessoal que se concretiza o conhecimento íntimo de Deus, conhecimento este ‘que só dá a possibilidade de moldar a imagem conforme o Original’.
Edith Stein (Santa Teresa Benedita da Cruz)[1]
Encerramos o texto publicado ontem neste blog, em que tratamos da temática fé e razão, no momento em que introduzíamos a questo da dificuldadede de comunicar o não-saber a que a experiência do sagrado dá acesso. É a partir desse ponto que iniciamos este texto.
Devido às suas peculiaridades, quais sejam, manifestar-se sempre como um mysterium tremendum e fascinans - o sagrado escapa às categorias convencionais de classificação, não sendo possível encontrar termos ou expressões que dêem conta de sua natureza. Daí porque dirá o historiador das religiões Mircea Eliade:
O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades “naturais”. É certo que a linguagem exprime ingenuamente o tremendum, ou a majestas, ou o mysterium fascinans mediante termos tomados de empréstimo ao domínio nautral ou à vida espiritual profana do homem. Mas sabemos que essa terminologia analógica se deve justamente à incapacidade humana de exprimir o ganz andere: a linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos tirados dessa mesma experiência natural.[2]
Essa é, possivelmente, a maior dificuldade em que esbarra os que se aventuram pelos obscuros meandros da experiência radical da fé. Vale a pena citar aqui um trecho do capítulo da biografia de Santa Teresa de Jesus escrita por Elisabeth Reynaud, Teresa de Ávila ou o divino prazer. O capítulo tem por título Dizer o indizível, e nele a autora deixa transparecer a angústia experimentada pela Santa ante a vã tentativa de relatar ao seu confessor uma experiência de manifestação do sagrado ou, na acepção de Mircea Eliade, uma hierofania:
Certo dia, ela implorava a são Pedro que a socorresse, quando teve uma visão: “Vi Jesus Cristo junto a mim.”
Inicialmente, fica amedrontada. Logo entretanto lhe vem sua calma habitual. Mas como anunciar isso a “eles”?
“Que Ele estivesse sempre a meu lado direito”, diz ela sem afetação, “era algo que eu sentia perfeitamente, mas como a visão era sem imagem, não podia ver sob que forma se apresentava.”
O Esposo do Cântico dos cânticos desce em pessoa para dar apoio a sua amante aflita. Ela não o vê, mas Ele está ali. E como o padre Alvarez lhe disse que só poderia continuar a defendê-la se ela não lhe escondesse nada, ela se precipita ao colégio para contar-lhe tudo. A conversa é confiante, de sua parte, mas no mínimo fria da parte do confessor. Ele questiona:
“Sob que forma o vês?
- Eu não O vejo.
- Como podes então saber que é Jesus Cristo?
- Não sei como se dá, mas é impossível deixar de conhecer que Ele está junto de mim: tenho a visão, o sentimento perfeitamente claro.
- Mas acabaste de dizer que não O vês.
- Não vejo Jesus Cristo nem com os olhos do corpo nem com os da alma porque a visão é sem imagem; mas constato Sua presença com maior grau de certeza do que se o visse com meus olhos.
- Não compreendo. Explica-te.
- Imagine um cego ou alguém que esteja nas trevas e que por isso mesmo não pode enxergar uma pessoa junto a si. Mas a comparação é muito precária, pois essa pessoa a que me refiro conta com os demais sentidos. Em meu caso, nada disso acontece. A alma percebe o objeto mediante um conhecimento mais claro que o sol.
- Vês uma claridade ensolarada?
- Não, é uma luz que ilumina a inteligência e a alma sem claridade visível.
- Como podes perceber sem ver nem sentir?
- Percebe-se o objeto mediante um conhecimento tão claro que exclui qualquer dúvida possível. Fica uma certeza, que é o que predomina.
- Não será um efeito de tua própria vontade?
- As faculdades nada têm a ver com o Dom que nos é feito. É como um alimento que aparecesse em nosso estômago sem que o houvéssemos absorvido. Ou uma palavra dita em voz alta e perto da orelha de uma pessoa, que não cuidasse de ouvir. Ou então, imagine alguém que, sem ter aprendido a ler, sem nada ter feito para se instruir, sem ter estudado coisa alguma, se visse na posse da ciência adquirida. Num momento, a alma sabe.
- Referes-te à percepção imediata que há entre pessoas que se amam?
- É o que acontece nesse caso, penso. Os dois amantes, a alma e Deus, fixam o olhar um no outro e assim se entendem mutuamente.”
O encontro dura horas. O confessor força sua penitente até as últimas defesas, e em vez de esgotar a fonte de suas comparações encontra sempre diante de si uma nova imagem por ela proposta para atraí-lo a uma compreensão mais justa, mais firme do que tenta relatar.[3]
Gostaríamos de destacar aqui especialmente dois excertos do trecho citado. O primeiro é aquele em que a mestra espanhola afirma de forma peremptória: Num momento, a alma sabe. Essa frase resume tudo o que se poderia dizer sobre a experiência do sagrado. É um saber que prescinde de adjetivações. Mas a dificuldade de dizê-lo é enorme, quase intransponível. No caso que estamos tomando como exemplo, tanta consciência tem a santa da dificuldade de sua tarefa, que, ao iniciar o relato das Quartas Moradas no Castelo Interior, suplica:
Para começar a falar das quartas moradas, bastante necessário é o que fiz: encomendar-me ao Espírito Santo e suplicar-Lhe que, daqui em diante, fale por mim, a fim de que eu possa dizer algo das moradas restantes de um modo que o entendais. Porque se começa aqui a abordar coisas sobrenaturais, dificílimas de explicar, a não ser que Sua Majestade o faça, como fez quando, há cerca de catorze anos, escrevi acerca do que até então havia entendido.
Tenho hoje, ao que me aprece, um pouco mais de luz no que tange a essas graças que o Senhor concede a algumas almas. Saber dizê-las, no entanto, é algo muito diferente.[4]
Assim, mesmo apesar da dificuldade, ela se arrisca a dizer, a comunicar esse indizível saber. E aqui queremos resgatar o outro excerto. Trata-se do seguinte: O confessor força sua penitente até as últimas defesas, e em vez de esgotar a fonte de suas comparações encontra sempre diante de si uma nova imagem por ela proposta para atraí-lo a uma compreensão mais justa, mais firme do que tenta relatar.
Gostaria de chamar atenção aqui para a forma de linguagem utilizada por Santa Teresa para relatar sua experiência. Ante a total inanidade da linguagem usual, ela apela para comparações, ou seja, resta-lhe como última alternativa valer-se da metáfora. A mestra carmelita usa e abusa da linguagem simbólica, movida pelo único objetivo de dar a entender aos seus interlocutores o que ela quer transmitir: sua experiência de fé. Daí porque ela falará, ao longo de sua vasta obra, de castelos, matrimônio etc. no afã de tentar se fazer entender. Tentando, por exemplo, expressar o que é a união da alma com Deus, escreve:
Equiparemos a união a duas velas de cera ligadas de tal maneira que produzem uma única chama, como se o pavio, a luz e a cera não formassem senão uma unidade. No entanto, depois, é possível separar uma vela da outra – permanecendo então duas velas – e o pavio da cera.
Aqui, todavia, é como se caísse água do céu sobre um rio ou uma fonte, confundindo-se então todas as águas. Já não se sabe o que é água do rio ou água que caiu do céu. É também como se um pequeno arroio se lançasse no mar, não havendo mais meio de recuperá-lo. Ou ainda como se num aposento houvesse janelas por onde entrasse muita luz; penetra dividida no recinto, mas se torna uma só luz.[5]
Note-se o quanto Santa Teresa se vale aí da linguagem simbólica. O símbolo, portanto, se oferece como única possibilidade de transmissão da experiência do sagrado. Daí porque Mircea Eliade afirmará:
O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser.[6]
E aqui vamos desaguar nas religiões. Estribadas nos mitos que lhes conferem os fundamentos – e não há religião sem mito – e tendo como forma precípua de expressão o rito – dramatização dos mitos originários – as religiões constituem sistemas simbólicos por excelência. Posto que fundadas e sustentadas na fé, não é possível religião sem referência à linguagem simbólica, a única que dá conta do seu objeto primordial: a relação com o sagrado. Daí porque cumprem as religiões um papel tão importante, tanto em termos sociais quanto psicológicos, uma vez que, com sua linguagem eminentemente simbólica, permitem ao indivíduo realizar de forma um tanto mais segura sua travessia pela obscura e negra nuvem do não-saber, apanágio da fé, razão pela qual se pode aplicar ao crente a máxima latina como expressão de uma verdade: Habentibus symbolum facilis est transitus, ou seja, para os que possuem o símbolo a travessia é fácil.
Domvasco
[1] Citado por: FELDMAN, Christian. Edith Stein: Judia, Atéia e Monja. Trad. Eurides Avance de Souza; Bauru, SP: EDUSC, 2001, p. 128.
[2] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Traduçao Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 16.
[3] REYNAUD, Elisabeth. Teresa de Ávila ou o divino prazer. Traduçao Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 155.
[4] Idem, p. 470.
[5] JESUS, Tersea de. Castelo Interior. In: Obras Completas. Loyola, São Paulo: 1995, p. 572.
[6] ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos: Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Tradução Sonia Cristina Tamer. – São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 8.
Edith Stein (Santa Teresa Benedita da Cruz)[1]
Encerramos o texto publicado ontem neste blog, em que tratamos da temática fé e razão, no momento em que introduzíamos a questo da dificuldadede de comunicar o não-saber a que a experiência do sagrado dá acesso. É a partir desse ponto que iniciamos este texto.
Devido às suas peculiaridades, quais sejam, manifestar-se sempre como um mysterium tremendum e fascinans - o sagrado escapa às categorias convencionais de classificação, não sendo possível encontrar termos ou expressões que dêem conta de sua natureza. Daí porque dirá o historiador das religiões Mircea Eliade:
O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades “naturais”. É certo que a linguagem exprime ingenuamente o tremendum, ou a majestas, ou o mysterium fascinans mediante termos tomados de empréstimo ao domínio nautral ou à vida espiritual profana do homem. Mas sabemos que essa terminologia analógica se deve justamente à incapacidade humana de exprimir o ganz andere: a linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos tirados dessa mesma experiência natural.[2]
Essa é, possivelmente, a maior dificuldade em que esbarra os que se aventuram pelos obscuros meandros da experiência radical da fé. Vale a pena citar aqui um trecho do capítulo da biografia de Santa Teresa de Jesus escrita por Elisabeth Reynaud, Teresa de Ávila ou o divino prazer. O capítulo tem por título Dizer o indizível, e nele a autora deixa transparecer a angústia experimentada pela Santa ante a vã tentativa de relatar ao seu confessor uma experiência de manifestação do sagrado ou, na acepção de Mircea Eliade, uma hierofania:
Certo dia, ela implorava a são Pedro que a socorresse, quando teve uma visão: “Vi Jesus Cristo junto a mim.”
Inicialmente, fica amedrontada. Logo entretanto lhe vem sua calma habitual. Mas como anunciar isso a “eles”?
“Que Ele estivesse sempre a meu lado direito”, diz ela sem afetação, “era algo que eu sentia perfeitamente, mas como a visão era sem imagem, não podia ver sob que forma se apresentava.”
O Esposo do Cântico dos cânticos desce em pessoa para dar apoio a sua amante aflita. Ela não o vê, mas Ele está ali. E como o padre Alvarez lhe disse que só poderia continuar a defendê-la se ela não lhe escondesse nada, ela se precipita ao colégio para contar-lhe tudo. A conversa é confiante, de sua parte, mas no mínimo fria da parte do confessor. Ele questiona:
“Sob que forma o vês?
- Eu não O vejo.
- Como podes então saber que é Jesus Cristo?
- Não sei como se dá, mas é impossível deixar de conhecer que Ele está junto de mim: tenho a visão, o sentimento perfeitamente claro.
- Mas acabaste de dizer que não O vês.
- Não vejo Jesus Cristo nem com os olhos do corpo nem com os da alma porque a visão é sem imagem; mas constato Sua presença com maior grau de certeza do que se o visse com meus olhos.
- Não compreendo. Explica-te.
- Imagine um cego ou alguém que esteja nas trevas e que por isso mesmo não pode enxergar uma pessoa junto a si. Mas a comparação é muito precária, pois essa pessoa a que me refiro conta com os demais sentidos. Em meu caso, nada disso acontece. A alma percebe o objeto mediante um conhecimento mais claro que o sol.
- Vês uma claridade ensolarada?
- Não, é uma luz que ilumina a inteligência e a alma sem claridade visível.
- Como podes perceber sem ver nem sentir?
- Percebe-se o objeto mediante um conhecimento tão claro que exclui qualquer dúvida possível. Fica uma certeza, que é o que predomina.
- Não será um efeito de tua própria vontade?
- As faculdades nada têm a ver com o Dom que nos é feito. É como um alimento que aparecesse em nosso estômago sem que o houvéssemos absorvido. Ou uma palavra dita em voz alta e perto da orelha de uma pessoa, que não cuidasse de ouvir. Ou então, imagine alguém que, sem ter aprendido a ler, sem nada ter feito para se instruir, sem ter estudado coisa alguma, se visse na posse da ciência adquirida. Num momento, a alma sabe.
- Referes-te à percepção imediata que há entre pessoas que se amam?
- É o que acontece nesse caso, penso. Os dois amantes, a alma e Deus, fixam o olhar um no outro e assim se entendem mutuamente.”
O encontro dura horas. O confessor força sua penitente até as últimas defesas, e em vez de esgotar a fonte de suas comparações encontra sempre diante de si uma nova imagem por ela proposta para atraí-lo a uma compreensão mais justa, mais firme do que tenta relatar.[3]
Gostaríamos de destacar aqui especialmente dois excertos do trecho citado. O primeiro é aquele em que a mestra espanhola afirma de forma peremptória: Num momento, a alma sabe. Essa frase resume tudo o que se poderia dizer sobre a experiência do sagrado. É um saber que prescinde de adjetivações. Mas a dificuldade de dizê-lo é enorme, quase intransponível. No caso que estamos tomando como exemplo, tanta consciência tem a santa da dificuldade de sua tarefa, que, ao iniciar o relato das Quartas Moradas no Castelo Interior, suplica:
Para começar a falar das quartas moradas, bastante necessário é o que fiz: encomendar-me ao Espírito Santo e suplicar-Lhe que, daqui em diante, fale por mim, a fim de que eu possa dizer algo das moradas restantes de um modo que o entendais. Porque se começa aqui a abordar coisas sobrenaturais, dificílimas de explicar, a não ser que Sua Majestade o faça, como fez quando, há cerca de catorze anos, escrevi acerca do que até então havia entendido.
Tenho hoje, ao que me aprece, um pouco mais de luz no que tange a essas graças que o Senhor concede a algumas almas. Saber dizê-las, no entanto, é algo muito diferente.[4]
Assim, mesmo apesar da dificuldade, ela se arrisca a dizer, a comunicar esse indizível saber. E aqui queremos resgatar o outro excerto. Trata-se do seguinte: O confessor força sua penitente até as últimas defesas, e em vez de esgotar a fonte de suas comparações encontra sempre diante de si uma nova imagem por ela proposta para atraí-lo a uma compreensão mais justa, mais firme do que tenta relatar.
Gostaria de chamar atenção aqui para a forma de linguagem utilizada por Santa Teresa para relatar sua experiência. Ante a total inanidade da linguagem usual, ela apela para comparações, ou seja, resta-lhe como última alternativa valer-se da metáfora. A mestra carmelita usa e abusa da linguagem simbólica, movida pelo único objetivo de dar a entender aos seus interlocutores o que ela quer transmitir: sua experiência de fé. Daí porque ela falará, ao longo de sua vasta obra, de castelos, matrimônio etc. no afã de tentar se fazer entender. Tentando, por exemplo, expressar o que é a união da alma com Deus, escreve:
Equiparemos a união a duas velas de cera ligadas de tal maneira que produzem uma única chama, como se o pavio, a luz e a cera não formassem senão uma unidade. No entanto, depois, é possível separar uma vela da outra – permanecendo então duas velas – e o pavio da cera.
Aqui, todavia, é como se caísse água do céu sobre um rio ou uma fonte, confundindo-se então todas as águas. Já não se sabe o que é água do rio ou água que caiu do céu. É também como se um pequeno arroio se lançasse no mar, não havendo mais meio de recuperá-lo. Ou ainda como se num aposento houvesse janelas por onde entrasse muita luz; penetra dividida no recinto, mas se torna uma só luz.[5]
Note-se o quanto Santa Teresa se vale aí da linguagem simbólica. O símbolo, portanto, se oferece como única possibilidade de transmissão da experiência do sagrado. Daí porque Mircea Eliade afirmará:
O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser.[6]
E aqui vamos desaguar nas religiões. Estribadas nos mitos que lhes conferem os fundamentos – e não há religião sem mito – e tendo como forma precípua de expressão o rito – dramatização dos mitos originários – as religiões constituem sistemas simbólicos por excelência. Posto que fundadas e sustentadas na fé, não é possível religião sem referência à linguagem simbólica, a única que dá conta do seu objeto primordial: a relação com o sagrado. Daí porque cumprem as religiões um papel tão importante, tanto em termos sociais quanto psicológicos, uma vez que, com sua linguagem eminentemente simbólica, permitem ao indivíduo realizar de forma um tanto mais segura sua travessia pela obscura e negra nuvem do não-saber, apanágio da fé, razão pela qual se pode aplicar ao crente a máxima latina como expressão de uma verdade: Habentibus symbolum facilis est transitus, ou seja, para os que possuem o símbolo a travessia é fácil.
Domvasco
[1] Citado por: FELDMAN, Christian. Edith Stein: Judia, Atéia e Monja. Trad. Eurides Avance de Souza; Bauru, SP: EDUSC, 2001, p. 128.
[2] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Traduçao Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 16.
[3] REYNAUD, Elisabeth. Teresa de Ávila ou o divino prazer. Traduçao Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 155.
[4] Idem, p. 470.
[5] JESUS, Tersea de. Castelo Interior. In: Obras Completas. Loyola, São Paulo: 1995, p. 572.
[6] ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos: Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Tradução Sonia Cristina Tamer. – São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 8.
quinta-feira, 23 de abril de 2009
FÉ E RAZÃO
A FÉ E A RAZÃO (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade.
João Paulo II[i]
Entro com mais luz nos mistérios da fé quando renuncio a entendê-los apenas pela inteligência.
Santa Teresa de Jesus
Gostaria de iniciar este texto com uma citação do belo livro de Nikos Kazantzákis intitulado O pobre de Deus, no qual o escritor grego escreve uma história romanceada da vida de São Francisco de Assis:
Um outro dia, encontrei numa gruta um santo. Tinha ficado cego por muito ter chorado. Sua pele, por causa da falta de limpeza e também da santidade, tinha-se tornado toda escamosa. Arrepiam-se meus cabelos só de pensar nisso.
Foi ele que me deu a resposta mais certa, a mais terrível.
- Qual? Quero ouvi-la! – disse-me Francisco, pegando minha mão. Ele tremia.
- Inclinei-me, prosternei-me diante dele e perguntei-lhe: “Santo eremita, vou em busca de Deus; indica-me o caminho”.
- Não existe caminho – respondeu-me, batendo seu bastão na terra. – Não existe caminho.
- Como assim? – disse eu , assustado.
- O que existe é um abismo; salta!
- Um abismo? É este o caminho? – gritei.
- É este mesmo. Todos os caminhos levam à terra; o salto leva a Deus. Salta![ii]
O diálogo acima resume de forma perfeita o aspecto abismal da fé. O sagrado guarda em si, conforme teorizado por Rudolf Otto, duas características fundamentais, intimamente imbricadas: tremendum e fascinans. Tremendum porque o contato radical com o sagrado sempre produz transformações profundas e avassaladoras – e os relatos dos místicos o mostram sobejamente. Fascinans porque o sagrado fascina, atrai, prende o sujeito em sua rede de forma inexorável e inapelável.
Partindo dessas duas características, pode-se iniciar a tentativa de estabelecer alguns possíveis paralelos, talvez, com esse outro instrumento do saber humano: a razão. Isso posto, fica estabelecido que, a partir daqui, se tratará os dois temas, fé e razão, como dois instrumentos distintos através dos quais pode-se aceder à verdade – ou, pelo menos, investigá-la.
Vejamos, inicialmente, as possíveis acepções para ambos os vocábulos, tendo como referência as definições propostas no Dicionário de Termos da Fé:
Razão: (em latim, ratio, derivado de reri, contar, julgar, através do particípio passado ratus, julgado, aprovado). A dupla idéia, de pensamentos e operação calculadora, encontra-se ordinariamente na palavra razão e nas suas derivadas ou afins: raciocínio (pensamento em ação), pro rata (idéia de cálculo). A razão é o modo de pensar próprio do homem, quer se compare com o animal (o homem é um animal racional), quer se compare com as inteligências puramente intuitivas dos puros espíritos, dos anjos (a inteligência humana é uma razão; procede por induções, deduções ou outros processos).[iii]
Fé: (do latim fidere, ter confiança). Resposta do homem ao chamamento de Deus. A fé é a fonte de toda a vida cristã. Na Bíblia, o vocabulário hebraico da fé tem duas dominantes: Aman, que evoca a solidez e a segurança (daí Amen: testemunhamos que é verdade, que é firme), e Batah, que evoca a confiança. Os tradutores gregos, que não dispunham de palavras adequadas, traduziram por várias séries de palavras, evocando umas o conhecimento; outras, a adesão e a confiança. Isto significa que há dois pólos ou dois aspectos na fé: a fé-adesão ou a fé-confiança, a que faz confiança na pessoa que revela (chama-se ainda a fé-conversão, porque, pela adesão, opera uma viragem daquele que crê); e a fé-conhecimento ou a fé-iluminação, que traz conhecimento e luz à alma comprometida com a Palavra de Deus e com a Sua Promessa.[iv]
Os dois conceitos, conforme propostos pelo Dicionário, são-nos bastante convenientes porque explicitam, já de saída, a diferença cabal entre um e outro. Enquanto que a razão remete à idéia de julgamento e, portanto, de análise e ponderação, a fé reporta-se à idéia de confiança. Neste sentido, pode-se afirmar que aquele que crê o faz para além de quaisquer julgamentos racionais. Para aquele que crê, a fé antecede a razão, motivo pelo qual Santo Anselmo afirmará no Proslogion: Neque enim quaero intellegere ut credam, que significa “certamente não procuro entender para crer, mas creio para entender”. Dessa afirmação derivou a máxima Credo ut intelligam, non intelligo ut credam, ou seja, “Creio para compreender, não compreendo para crer”, e Santo Agostinho, por sua vez, afirmará: Credimus enim ut cognoscamus, non cognoscamus ut credamos, isto é, “Cremos para conhecer, não conhecemos para crer”.
Em ambos os casos, tanto na razão quanto na fé, visa-se o saber. No entanto, pensamos, trata-se de saberes distintos. O saber racional é da ordem da lógica, da indução e da dedução. Um saber, diríamos, passível de demonstração, como é o caso dos teoremas físicos e matemáticos. Daí porque mesmo um aparente absurdo é passível de ser matematicamente demonstrável como, por exemplo, a premissa de que as paralelas se encontram no infinito.
Em se tratando da fé, porém, entra-se no domínio de um saber que é de uma outra ordem. O saber da fé não é um saber da ordem do demonstrável, mas do experienciável. É um saber vivido, existencial. A propósito, um estudioso do assunto, o Dr. Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, se valerá do vocábulo Sensciência para referir-se a este saber. Na acepção usada pelo professor, sensciência significa “ciência com sentido”. Aqui, sentido significa algo que foi experienciado pelo sujeito. Daí porque a este sujeito detentor de tal saber será facultado falar dele com autoridade - a autoridade própria dos que sabem. Foi fundamentado nessa premissa que C. G. Jung, ao ser indagado pelo repórter da BBC John Freeman se acreditava em Deus, respondeu: “Eu não acredito, eu sei”.
Este saber, porém, guarda duas características muito peculiares. Primeiro, uma vez que não é demonstrável, restará sempre um quê de incerteza, de dúvida, de não-saber, diríamos, embora essa expressão possa soar aqui paradoxal, posto que estamos tratando do saber. Mas é exatamente isso. É um itinerário que se faz às escuras, tateando, às apalpadelas, sem a menor segurança ou garantia de que seremos, por fim, agraciados com o almejado saber. A dificuldade maior estriba-se, talvez, naquilo que é objeto deste saber, por sua própria natureza inefável, numa palavra: o Sagrado. Talvez nenhum texto seja tão esclarecedor sobre o assunto quanto aquele que se encontra na obra que mereceu o sugestivo título de A Nuvem do Não-saber. Saliente-se que, como o autor escreve numa perspectiva cristã, a este Sagrado é atribuído um nome: Deus. Eis o trecho a que nos referimos:
Não se retraia então, mas trabalhe nele até você sentir o desejo. Pois quando você começa a executá-lo pela primeira vez, tudo quanto ovcê encontra é escuridão, uma espécie de nuvem do “não-saber”; você não pode dizer o que é, exceto que você sente, através de sua vontade, um simples desejo de alcançar Deus. Esta escuridão com a nuvem está sempre entre você e o seu Deus, não importa o que você faça, e é esta que o impede de ver Deus claramente através da luz do entendimento de sua razão, ou ainda que o impede de conhecer Deus na doçura do amor em sua própria afeição. Portanto, comece a descansar nesta escuridão enquanto você puder, gritando sempre por Ele, a quem você ama. Porque, se você vai conhecê-lo ou vê-lo de qualquer maneira, na medida em que isto seja possível aqui, terá que ser sempre nesta nuvem e nesta escuridão. Portanto, se você trabalhar neste exercício com toda a sua atenção como eu mandei, tenho plena confiança que, pela misericórdia de Deus, você atingirá este objetivo.[v]
E já quase no final da obra, afirma o anônimo porém inspirado autor:
Espiritualmente o mesmo é verdade acerca de nossas faculdades espirituais, quando estivermos trabalhando em relação ao conhecimento do próprio Deus. Pois não importa o volume de compreensão espiritual que um homem possa ter quanto ao conhecimento de todas as coisas espirituais criadas, ele jamais poderá chegar, pelo esforço de sua compreensão, ao conhecimento de uma coisa não criada, que nada é a não ser Deus. Mas, pela falha desta compreensão ele pode chegar a esse conhecimento. Pois onde a sua compreensão falha nada mais há além de Deus só; e foi por este motivo que São Dionísio disse: “O saber verdadeiramente divino de Deus é aquele que é conhecido pelo não-saber”.[vi]
Disso decorre a segunda característica desse saber. Uma vez que ele se reporta sempre a um não-saber, e sendo, ao mesmo tempo, da ordem do vivido, gera-se uma dificuldade quase intransponível para os que o experienciam, qual seja, a dificuldade de falar dele. Mas desse assunto tratarei num próximo texto.
Domvasco
[i] João Paulo II. Carta Encíclica FIDES ET RATIO do Sumo Pontífice João Paulo II aos bispos da Igreja Católica sobre as relações entre Fé e Razão. 8ª ed. São Paulo, Paulos, 1998, p. 5.
[ii] Kazantzákis, Nikos. O Pobre de Deus. Trad. Ísis Borges Belchior da Fonseca. – São Paulo: Arx, 2002, p. 32.
[iii] BROSSE, Olivier de La, HENRY, Antonin-Marie, ROUILLARD, Philippe (Direção). Dicionário de Termos da Fé. Porto, Portugal: Editorial Perpétuo Socorro/Aparecida, SP: Editora Santuário, s/d, p. 649.
[iv] Idem, p. 308.
[v] Anônimo. A Nuvem do Não-saber. Tradução Maria de Moraes Barros. 3ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1987, p. 33.
[vi] Idem, p. 167.
João Paulo II[i]
Entro com mais luz nos mistérios da fé quando renuncio a entendê-los apenas pela inteligência.
Santa Teresa de Jesus
Gostaria de iniciar este texto com uma citação do belo livro de Nikos Kazantzákis intitulado O pobre de Deus, no qual o escritor grego escreve uma história romanceada da vida de São Francisco de Assis:
Um outro dia, encontrei numa gruta um santo. Tinha ficado cego por muito ter chorado. Sua pele, por causa da falta de limpeza e também da santidade, tinha-se tornado toda escamosa. Arrepiam-se meus cabelos só de pensar nisso.
Foi ele que me deu a resposta mais certa, a mais terrível.
- Qual? Quero ouvi-la! – disse-me Francisco, pegando minha mão. Ele tremia.
- Inclinei-me, prosternei-me diante dele e perguntei-lhe: “Santo eremita, vou em busca de Deus; indica-me o caminho”.
- Não existe caminho – respondeu-me, batendo seu bastão na terra. – Não existe caminho.
- Como assim? – disse eu , assustado.
- O que existe é um abismo; salta!
- Um abismo? É este o caminho? – gritei.
- É este mesmo. Todos os caminhos levam à terra; o salto leva a Deus. Salta![ii]
O diálogo acima resume de forma perfeita o aspecto abismal da fé. O sagrado guarda em si, conforme teorizado por Rudolf Otto, duas características fundamentais, intimamente imbricadas: tremendum e fascinans. Tremendum porque o contato radical com o sagrado sempre produz transformações profundas e avassaladoras – e os relatos dos místicos o mostram sobejamente. Fascinans porque o sagrado fascina, atrai, prende o sujeito em sua rede de forma inexorável e inapelável.
Partindo dessas duas características, pode-se iniciar a tentativa de estabelecer alguns possíveis paralelos, talvez, com esse outro instrumento do saber humano: a razão. Isso posto, fica estabelecido que, a partir daqui, se tratará os dois temas, fé e razão, como dois instrumentos distintos através dos quais pode-se aceder à verdade – ou, pelo menos, investigá-la.
Vejamos, inicialmente, as possíveis acepções para ambos os vocábulos, tendo como referência as definições propostas no Dicionário de Termos da Fé:
Razão: (em latim, ratio, derivado de reri, contar, julgar, através do particípio passado ratus, julgado, aprovado). A dupla idéia, de pensamentos e operação calculadora, encontra-se ordinariamente na palavra razão e nas suas derivadas ou afins: raciocínio (pensamento em ação), pro rata (idéia de cálculo). A razão é o modo de pensar próprio do homem, quer se compare com o animal (o homem é um animal racional), quer se compare com as inteligências puramente intuitivas dos puros espíritos, dos anjos (a inteligência humana é uma razão; procede por induções, deduções ou outros processos).[iii]
Fé: (do latim fidere, ter confiança). Resposta do homem ao chamamento de Deus. A fé é a fonte de toda a vida cristã. Na Bíblia, o vocabulário hebraico da fé tem duas dominantes: Aman, que evoca a solidez e a segurança (daí Amen: testemunhamos que é verdade, que é firme), e Batah, que evoca a confiança. Os tradutores gregos, que não dispunham de palavras adequadas, traduziram por várias séries de palavras, evocando umas o conhecimento; outras, a adesão e a confiança. Isto significa que há dois pólos ou dois aspectos na fé: a fé-adesão ou a fé-confiança, a que faz confiança na pessoa que revela (chama-se ainda a fé-conversão, porque, pela adesão, opera uma viragem daquele que crê); e a fé-conhecimento ou a fé-iluminação, que traz conhecimento e luz à alma comprometida com a Palavra de Deus e com a Sua Promessa.[iv]
Os dois conceitos, conforme propostos pelo Dicionário, são-nos bastante convenientes porque explicitam, já de saída, a diferença cabal entre um e outro. Enquanto que a razão remete à idéia de julgamento e, portanto, de análise e ponderação, a fé reporta-se à idéia de confiança. Neste sentido, pode-se afirmar que aquele que crê o faz para além de quaisquer julgamentos racionais. Para aquele que crê, a fé antecede a razão, motivo pelo qual Santo Anselmo afirmará no Proslogion: Neque enim quaero intellegere ut credam, que significa “certamente não procuro entender para crer, mas creio para entender”. Dessa afirmação derivou a máxima Credo ut intelligam, non intelligo ut credam, ou seja, “Creio para compreender, não compreendo para crer”, e Santo Agostinho, por sua vez, afirmará: Credimus enim ut cognoscamus, non cognoscamus ut credamos, isto é, “Cremos para conhecer, não conhecemos para crer”.
Em ambos os casos, tanto na razão quanto na fé, visa-se o saber. No entanto, pensamos, trata-se de saberes distintos. O saber racional é da ordem da lógica, da indução e da dedução. Um saber, diríamos, passível de demonstração, como é o caso dos teoremas físicos e matemáticos. Daí porque mesmo um aparente absurdo é passível de ser matematicamente demonstrável como, por exemplo, a premissa de que as paralelas se encontram no infinito.
Em se tratando da fé, porém, entra-se no domínio de um saber que é de uma outra ordem. O saber da fé não é um saber da ordem do demonstrável, mas do experienciável. É um saber vivido, existencial. A propósito, um estudioso do assunto, o Dr. Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, se valerá do vocábulo Sensciência para referir-se a este saber. Na acepção usada pelo professor, sensciência significa “ciência com sentido”. Aqui, sentido significa algo que foi experienciado pelo sujeito. Daí porque a este sujeito detentor de tal saber será facultado falar dele com autoridade - a autoridade própria dos que sabem. Foi fundamentado nessa premissa que C. G. Jung, ao ser indagado pelo repórter da BBC John Freeman se acreditava em Deus, respondeu: “Eu não acredito, eu sei”.
Este saber, porém, guarda duas características muito peculiares. Primeiro, uma vez que não é demonstrável, restará sempre um quê de incerteza, de dúvida, de não-saber, diríamos, embora essa expressão possa soar aqui paradoxal, posto que estamos tratando do saber. Mas é exatamente isso. É um itinerário que se faz às escuras, tateando, às apalpadelas, sem a menor segurança ou garantia de que seremos, por fim, agraciados com o almejado saber. A dificuldade maior estriba-se, talvez, naquilo que é objeto deste saber, por sua própria natureza inefável, numa palavra: o Sagrado. Talvez nenhum texto seja tão esclarecedor sobre o assunto quanto aquele que se encontra na obra que mereceu o sugestivo título de A Nuvem do Não-saber. Saliente-se que, como o autor escreve numa perspectiva cristã, a este Sagrado é atribuído um nome: Deus. Eis o trecho a que nos referimos:
Não se retraia então, mas trabalhe nele até você sentir o desejo. Pois quando você começa a executá-lo pela primeira vez, tudo quanto ovcê encontra é escuridão, uma espécie de nuvem do “não-saber”; você não pode dizer o que é, exceto que você sente, através de sua vontade, um simples desejo de alcançar Deus. Esta escuridão com a nuvem está sempre entre você e o seu Deus, não importa o que você faça, e é esta que o impede de ver Deus claramente através da luz do entendimento de sua razão, ou ainda que o impede de conhecer Deus na doçura do amor em sua própria afeição. Portanto, comece a descansar nesta escuridão enquanto você puder, gritando sempre por Ele, a quem você ama. Porque, se você vai conhecê-lo ou vê-lo de qualquer maneira, na medida em que isto seja possível aqui, terá que ser sempre nesta nuvem e nesta escuridão. Portanto, se você trabalhar neste exercício com toda a sua atenção como eu mandei, tenho plena confiança que, pela misericórdia de Deus, você atingirá este objetivo.[v]
E já quase no final da obra, afirma o anônimo porém inspirado autor:
Espiritualmente o mesmo é verdade acerca de nossas faculdades espirituais, quando estivermos trabalhando em relação ao conhecimento do próprio Deus. Pois não importa o volume de compreensão espiritual que um homem possa ter quanto ao conhecimento de todas as coisas espirituais criadas, ele jamais poderá chegar, pelo esforço de sua compreensão, ao conhecimento de uma coisa não criada, que nada é a não ser Deus. Mas, pela falha desta compreensão ele pode chegar a esse conhecimento. Pois onde a sua compreensão falha nada mais há além de Deus só; e foi por este motivo que São Dionísio disse: “O saber verdadeiramente divino de Deus é aquele que é conhecido pelo não-saber”.[vi]
Disso decorre a segunda característica desse saber. Uma vez que ele se reporta sempre a um não-saber, e sendo, ao mesmo tempo, da ordem do vivido, gera-se uma dificuldade quase intransponível para os que o experienciam, qual seja, a dificuldade de falar dele. Mas desse assunto tratarei num próximo texto.
Domvasco
[i] João Paulo II. Carta Encíclica FIDES ET RATIO do Sumo Pontífice João Paulo II aos bispos da Igreja Católica sobre as relações entre Fé e Razão. 8ª ed. São Paulo, Paulos, 1998, p. 5.
[ii] Kazantzákis, Nikos. O Pobre de Deus. Trad. Ísis Borges Belchior da Fonseca. – São Paulo: Arx, 2002, p. 32.
[iii] BROSSE, Olivier de La, HENRY, Antonin-Marie, ROUILLARD, Philippe (Direção). Dicionário de Termos da Fé. Porto, Portugal: Editorial Perpétuo Socorro/Aparecida, SP: Editora Santuário, s/d, p. 649.
[iv] Idem, p. 308.
[v] Anônimo. A Nuvem do Não-saber. Tradução Maria de Moraes Barros. 3ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1987, p. 33.
[vi] Idem, p. 167.
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