sexta-feira, 24 de abril de 2009

A DIFÍCIL EXPRESSÃO DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

O que o profeta ouve e vê é como que ‘o supra-sumo’ da teologia simbólica... Mas o mais importante ainda é ser tocado internamente por Deus, sem palavras ou imagens. Pois é nesse encontro pessoal que se concretiza o conhecimento íntimo de Deus, conhecimento este ‘que só dá a possibilidade de moldar a imagem conforme o Original’.
Edith Stein (Santa Teresa Benedita da Cruz)
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Encerramos o texto publicado ontem neste blog, em que tratamos da temática fé e razão, no momento em que introduzíamos a questo da dificuldadede de comunicar o não-saber a que a experiência do sagrado dá acesso. É a partir desse ponto que iniciamos este texto.

Devido às suas peculiaridades, quais sejam, manifestar-se sempre como um mysterium tremendum e fascinans - o sagrado escapa às categorias convencionais de classificação, não sendo possível encontrar termos ou expressões que dêem conta de sua natureza. Daí porque dirá o historiador das religiões Mircea Eliade:

O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades “naturais”. É certo que a linguagem exprime ingenuamente o tremendum, ou a majestas, ou o mysterium fascinans mediante termos tomados de empréstimo ao domínio nautral ou à vida espiritual profana do homem. Mas sabemos que essa terminologia analógica se deve justamente à incapacidade humana de exprimir o ganz andere: a linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos tirados dessa mesma experiência natural.
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Essa é, possivelmente, a maior dificuldade em que esbarra os que se aventuram pelos obscuros meandros da experiência radical da fé. Vale a pena citar aqui um trecho do capítulo da biografia de Santa Teresa de Jesus escrita por Elisabeth Reynaud, Teresa de Ávila ou o divino prazer. O capítulo tem por título Dizer o indizível, e nele a autora deixa transparecer a angústia experimentada pela Santa ante a vã tentativa de relatar ao seu confessor uma experiência de manifestação do sagrado ou, na acepção de Mircea Eliade, uma hierofania:

Certo dia, ela implorava a são Pedro que a socorresse, quando teve uma visão: “Vi Jesus Cristo junto a mim.”
Inicialmente, fica amedrontada. Logo entretanto lhe vem sua calma habitual. Mas como anunciar isso a “eles”?
“Que Ele estivesse sempre a meu lado direito”, diz ela sem afetação, “era algo que eu sentia perfeitamente, mas como a visão era sem imagem, não podia ver sob que forma se apresentava.”
O Esposo do Cântico dos cânticos desce em pessoa para dar apoio a sua amante aflita. Ela não o vê, mas Ele está ali. E como o padre Alvarez lhe disse que só poderia continuar a defendê-la se ela não lhe escondesse nada, ela se precipita ao colégio para contar-lhe tudo. A conversa é confiante, de sua parte, mas no mínimo fria da parte do confessor. Ele questiona:
“Sob que forma o vês?
- Eu não O vejo.
- Como podes então saber que é Jesus Cristo?
- Não sei como se dá, mas é impossível deixar de conhecer que Ele está junto de mim: tenho a visão, o sentimento perfeitamente claro.
- Mas acabaste de dizer que não O vês.
- Não vejo Jesus Cristo nem com os olhos do corpo nem com os da alma porque a visão é sem imagem; mas constato Sua presença com maior grau de certeza do que se o visse com meus olhos.
- Não compreendo. Explica-te.
- Imagine um cego ou alguém que esteja nas trevas e que por isso mesmo não pode enxergar uma pessoa junto a si. Mas a comparação é muito precária, pois essa pessoa a que me refiro conta com os demais sentidos. Em meu caso, nada disso acontece. A alma percebe o objeto mediante um conhecimento mais claro que o sol.
- Vês uma claridade ensolarada?
- Não, é uma luz que ilumina a inteligência e a alma sem claridade visível.
- Como podes perceber sem ver nem sentir?
- Percebe-se o objeto mediante um conhecimento tão claro que exclui qualquer dúvida possível. Fica uma certeza, que é o que predomina.
- Não será um efeito de tua própria vontade?
- As faculdades nada têm a ver com o Dom que nos é feito. É como um alimento que aparecesse em nosso estômago sem que o houvéssemos absorvido. Ou uma palavra dita em voz alta e perto da orelha de uma pessoa, que não cuidasse de ouvir. Ou então, imagine alguém que, sem ter aprendido a ler, sem nada ter feito para se instruir, sem ter estudado coisa alguma, se visse na posse da ciência adquirida. Num momento, a alma sabe.
- Referes-te à percepção imediata que há entre pessoas que se amam?
- É o que acontece nesse caso, penso. Os dois amantes, a alma e Deus, fixam o olhar um no outro e assim se entendem mutuamente.”
O encontro dura horas. O confessor força sua penitente até as últimas defesas, e em vez de esgotar a fonte de suas comparações encontra sempre diante de si uma nova imagem por ela proposta para atraí-lo a uma compreensão mais justa, mais firme do que tenta relatar
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Gostaríamos de destacar aqui especialmente dois excertos do trecho citado. O primeiro é aquele em que a mestra espanhola afirma de forma peremptória: Num momento, a alma sabe. Essa frase resume tudo o que se poderia dizer sobre a experiência do sagrado. É um saber que prescinde de adjetivações. Mas a dificuldade de dizê-lo é enorme, quase intransponível. No caso que estamos tomando como exemplo, tanta consciência tem a santa da dificuldade de sua tarefa, que, ao iniciar o relato das Quartas Moradas no Castelo Interior, suplica:

Para começar a falar das quartas moradas, bastante necessário é o que fiz: encomendar-me ao Espírito Santo e suplicar-Lhe que, daqui em diante, fale por mim, a fim de que eu possa dizer algo das moradas restantes de um modo que o entendais. Porque se começa aqui a abordar coisas sobrenaturais, dificílimas de explicar, a não ser que Sua Majestade o faça, como fez quando, há cerca de catorze anos, escrevi acerca do que até então havia entendido.
Tenho hoje, ao que me aprece, um pouco mais de luz no que tange a essas graças que o Senhor concede a algumas almas. Saber dizê-las, no entanto, é algo muito diferente
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Assim, mesmo apesar da dificuldade, ela se arrisca a dizer, a comunicar esse indizível saber. E aqui queremos resgatar o outro excerto. Trata-se do seguinte: O confessor força sua penitente até as últimas defesas, e em vez de esgotar a fonte de suas comparações encontra sempre diante de si uma nova imagem por ela proposta para atraí-lo a uma compreensão mais justa, mais firme do que tenta relatar.

Gostaria de chamar atenção aqui para a forma de linguagem utilizada por Santa Teresa para relatar sua experiência. Ante a total inanidade da linguagem usual, ela apela para comparações, ou seja, resta-lhe como última alternativa valer-se da metáfora. A mestra carmelita usa e abusa da linguagem simbólica, movida pelo único objetivo de dar a entender aos seus interlocutores o que ela quer transmitir: sua experiência de fé. Daí porque ela falará, ao longo de sua vasta obra, de castelos, matrimônio etc. no afã de tentar se fazer entender. Tentando, por exemplo, expressar o que é a união da alma com Deus, escreve:

Equiparemos a união a duas velas de cera ligadas de tal maneira que produzem uma única chama, como se o pavio, a luz e a cera não formassem senão uma unidade. No entanto, depois, é possível separar uma vela da outra – permanecendo então duas velas – e o pavio da cera.
Aqui, todavia, é como se caísse água do céu sobre um rio ou uma fonte, confundindo-se então todas as águas. Já não se sabe o que é água do rio ou água que caiu do céu. É também como se um pequeno arroio se lançasse no mar, não havendo mais meio de recuperá-lo. Ou ainda como se num aposento houvesse janelas por onde entrasse muita luz; penetra dividida no recinto, mas se torna uma só luz
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Note-se o quanto Santa Teresa se vale aí da linguagem simbólica. O símbolo, portanto, se oferece como única possibilidade de transmissão da experiência do sagrado. Daí porque Mircea Eliade afirmará:

O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser.
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E aqui vamos desaguar nas religiões. Estribadas nos mitos que lhes conferem os fundamentos – e não há religião sem mito – e tendo como forma precípua de expressão o rito – dramatização dos mitos originários – as religiões constituem sistemas simbólicos por excelência. Posto que fundadas e sustentadas na fé, não é possível religião sem referência à linguagem simbólica, a única que dá conta do seu objeto primordial: a relação com o sagrado. Daí porque cumprem as religiões um papel tão importante, tanto em termos sociais quanto psicológicos, uma vez que, com sua linguagem eminentemente simbólica, permitem ao indivíduo realizar de forma um tanto mais segura sua travessia pela obscura e negra nuvem do não-saber, apanágio da fé, razão pela qual se pode aplicar ao crente a máxima latina como expressão de uma verdade: Habentibus symbolum facilis est transitus, ou seja, para os que possuem o símbolo a travessia é fácil.
Domvasco


[1] Citado por: FELDMAN, Christian. Edith Stein: Judia, Atéia e Monja. Trad. Eurides Avance de Souza; Bauru, SP: EDUSC, 2001, p. 128.
[2] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Traduçao Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 16.
[3] REYNAUD, Elisabeth. Teresa de Ávila ou o divino prazer. Traduçao Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 155.
[4] Idem, p. 470.
[5] JESUS, Tersea de. Castelo Interior. In: Obras Completas. Loyola, São Paulo: 1995, p. 572.
[6] ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos: Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Tradução Sonia Cristina Tamer. – São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 8.

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