A FÉ E A RAZÃO (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade.
João Paulo II[i]
Entro com mais luz nos mistérios da fé quando renuncio a entendê-los apenas pela inteligência.
Santa Teresa de Jesus
Gostaria de iniciar este texto com uma citação do belo livro de Nikos Kazantzákis intitulado O pobre de Deus, no qual o escritor grego escreve uma história romanceada da vida de São Francisco de Assis:
Um outro dia, encontrei numa gruta um santo. Tinha ficado cego por muito ter chorado. Sua pele, por causa da falta de limpeza e também da santidade, tinha-se tornado toda escamosa. Arrepiam-se meus cabelos só de pensar nisso.
Foi ele que me deu a resposta mais certa, a mais terrível.
- Qual? Quero ouvi-la! – disse-me Francisco, pegando minha mão. Ele tremia.
- Inclinei-me, prosternei-me diante dele e perguntei-lhe: “Santo eremita, vou em busca de Deus; indica-me o caminho”.
- Não existe caminho – respondeu-me, batendo seu bastão na terra. – Não existe caminho.
- Como assim? – disse eu , assustado.
- O que existe é um abismo; salta!
- Um abismo? É este o caminho? – gritei.
- É este mesmo. Todos os caminhos levam à terra; o salto leva a Deus. Salta![ii]
O diálogo acima resume de forma perfeita o aspecto abismal da fé. O sagrado guarda em si, conforme teorizado por Rudolf Otto, duas características fundamentais, intimamente imbricadas: tremendum e fascinans. Tremendum porque o contato radical com o sagrado sempre produz transformações profundas e avassaladoras – e os relatos dos místicos o mostram sobejamente. Fascinans porque o sagrado fascina, atrai, prende o sujeito em sua rede de forma inexorável e inapelável.
Partindo dessas duas características, pode-se iniciar a tentativa de estabelecer alguns possíveis paralelos, talvez, com esse outro instrumento do saber humano: a razão. Isso posto, fica estabelecido que, a partir daqui, se tratará os dois temas, fé e razão, como dois instrumentos distintos através dos quais pode-se aceder à verdade – ou, pelo menos, investigá-la.
Vejamos, inicialmente, as possíveis acepções para ambos os vocábulos, tendo como referência as definições propostas no Dicionário de Termos da Fé:
Razão: (em latim, ratio, derivado de reri, contar, julgar, através do particípio passado ratus, julgado, aprovado). A dupla idéia, de pensamentos e operação calculadora, encontra-se ordinariamente na palavra razão e nas suas derivadas ou afins: raciocínio (pensamento em ação), pro rata (idéia de cálculo). A razão é o modo de pensar próprio do homem, quer se compare com o animal (o homem é um animal racional), quer se compare com as inteligências puramente intuitivas dos puros espíritos, dos anjos (a inteligência humana é uma razão; procede por induções, deduções ou outros processos).[iii]
Fé: (do latim fidere, ter confiança). Resposta do homem ao chamamento de Deus. A fé é a fonte de toda a vida cristã. Na Bíblia, o vocabulário hebraico da fé tem duas dominantes: Aman, que evoca a solidez e a segurança (daí Amen: testemunhamos que é verdade, que é firme), e Batah, que evoca a confiança. Os tradutores gregos, que não dispunham de palavras adequadas, traduziram por várias séries de palavras, evocando umas o conhecimento; outras, a adesão e a confiança. Isto significa que há dois pólos ou dois aspectos na fé: a fé-adesão ou a fé-confiança, a que faz confiança na pessoa que revela (chama-se ainda a fé-conversão, porque, pela adesão, opera uma viragem daquele que crê); e a fé-conhecimento ou a fé-iluminação, que traz conhecimento e luz à alma comprometida com a Palavra de Deus e com a Sua Promessa.[iv]
Os dois conceitos, conforme propostos pelo Dicionário, são-nos bastante convenientes porque explicitam, já de saída, a diferença cabal entre um e outro. Enquanto que a razão remete à idéia de julgamento e, portanto, de análise e ponderação, a fé reporta-se à idéia de confiança. Neste sentido, pode-se afirmar que aquele que crê o faz para além de quaisquer julgamentos racionais. Para aquele que crê, a fé antecede a razão, motivo pelo qual Santo Anselmo afirmará no Proslogion: Neque enim quaero intellegere ut credam, que significa “certamente não procuro entender para crer, mas creio para entender”. Dessa afirmação derivou a máxima Credo ut intelligam, non intelligo ut credam, ou seja, “Creio para compreender, não compreendo para crer”, e Santo Agostinho, por sua vez, afirmará: Credimus enim ut cognoscamus, non cognoscamus ut credamos, isto é, “Cremos para conhecer, não conhecemos para crer”.
Em ambos os casos, tanto na razão quanto na fé, visa-se o saber. No entanto, pensamos, trata-se de saberes distintos. O saber racional é da ordem da lógica, da indução e da dedução. Um saber, diríamos, passível de demonstração, como é o caso dos teoremas físicos e matemáticos. Daí porque mesmo um aparente absurdo é passível de ser matematicamente demonstrável como, por exemplo, a premissa de que as paralelas se encontram no infinito.
Em se tratando da fé, porém, entra-se no domínio de um saber que é de uma outra ordem. O saber da fé não é um saber da ordem do demonstrável, mas do experienciável. É um saber vivido, existencial. A propósito, um estudioso do assunto, o Dr. Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, se valerá do vocábulo Sensciência para referir-se a este saber. Na acepção usada pelo professor, sensciência significa “ciência com sentido”. Aqui, sentido significa algo que foi experienciado pelo sujeito. Daí porque a este sujeito detentor de tal saber será facultado falar dele com autoridade - a autoridade própria dos que sabem. Foi fundamentado nessa premissa que C. G. Jung, ao ser indagado pelo repórter da BBC John Freeman se acreditava em Deus, respondeu: “Eu não acredito, eu sei”.
Este saber, porém, guarda duas características muito peculiares. Primeiro, uma vez que não é demonstrável, restará sempre um quê de incerteza, de dúvida, de não-saber, diríamos, embora essa expressão possa soar aqui paradoxal, posto que estamos tratando do saber. Mas é exatamente isso. É um itinerário que se faz às escuras, tateando, às apalpadelas, sem a menor segurança ou garantia de que seremos, por fim, agraciados com o almejado saber. A dificuldade maior estriba-se, talvez, naquilo que é objeto deste saber, por sua própria natureza inefável, numa palavra: o Sagrado. Talvez nenhum texto seja tão esclarecedor sobre o assunto quanto aquele que se encontra na obra que mereceu o sugestivo título de A Nuvem do Não-saber. Saliente-se que, como o autor escreve numa perspectiva cristã, a este Sagrado é atribuído um nome: Deus. Eis o trecho a que nos referimos:
Não se retraia então, mas trabalhe nele até você sentir o desejo. Pois quando você começa a executá-lo pela primeira vez, tudo quanto ovcê encontra é escuridão, uma espécie de nuvem do “não-saber”; você não pode dizer o que é, exceto que você sente, através de sua vontade, um simples desejo de alcançar Deus. Esta escuridão com a nuvem está sempre entre você e o seu Deus, não importa o que você faça, e é esta que o impede de ver Deus claramente através da luz do entendimento de sua razão, ou ainda que o impede de conhecer Deus na doçura do amor em sua própria afeição. Portanto, comece a descansar nesta escuridão enquanto você puder, gritando sempre por Ele, a quem você ama. Porque, se você vai conhecê-lo ou vê-lo de qualquer maneira, na medida em que isto seja possível aqui, terá que ser sempre nesta nuvem e nesta escuridão. Portanto, se você trabalhar neste exercício com toda a sua atenção como eu mandei, tenho plena confiança que, pela misericórdia de Deus, você atingirá este objetivo.[v]
E já quase no final da obra, afirma o anônimo porém inspirado autor:
Espiritualmente o mesmo é verdade acerca de nossas faculdades espirituais, quando estivermos trabalhando em relação ao conhecimento do próprio Deus. Pois não importa o volume de compreensão espiritual que um homem possa ter quanto ao conhecimento de todas as coisas espirituais criadas, ele jamais poderá chegar, pelo esforço de sua compreensão, ao conhecimento de uma coisa não criada, que nada é a não ser Deus. Mas, pela falha desta compreensão ele pode chegar a esse conhecimento. Pois onde a sua compreensão falha nada mais há além de Deus só; e foi por este motivo que São Dionísio disse: “O saber verdadeiramente divino de Deus é aquele que é conhecido pelo não-saber”.[vi]
Disso decorre a segunda característica desse saber. Uma vez que ele se reporta sempre a um não-saber, e sendo, ao mesmo tempo, da ordem do vivido, gera-se uma dificuldade quase intransponível para os que o experienciam, qual seja, a dificuldade de falar dele. Mas desse assunto tratarei num próximo texto.
Domvasco
[i] João Paulo II. Carta Encíclica FIDES ET RATIO do Sumo Pontífice João Paulo II aos bispos da Igreja Católica sobre as relações entre Fé e Razão. 8ª ed. São Paulo, Paulos, 1998, p. 5.
[ii] Kazantzákis, Nikos. O Pobre de Deus. Trad. Ísis Borges Belchior da Fonseca. – São Paulo: Arx, 2002, p. 32.
[iii] BROSSE, Olivier de La, HENRY, Antonin-Marie, ROUILLARD, Philippe (Direção). Dicionário de Termos da Fé. Porto, Portugal: Editorial Perpétuo Socorro/Aparecida, SP: Editora Santuário, s/d, p. 649.
[iv] Idem, p. 308.
[v] Anônimo. A Nuvem do Não-saber. Tradução Maria de Moraes Barros. 3ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1987, p. 33.
[vi] Idem, p. 167.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Olá, Domvasco.
ResponderExcluirSeja bem-vindo à blogosfera. Parabéns pela iniciativa. A leitura no mundo virtual agora torna-se muito mais rica com suas boas conexões e sincronicidades literárias.
Abraço,
Antônio Sales
Vasco,
ResponderExcluirParabéns pelo blog, estou citando v. no meu: http://www.plinioce.blogspot.com/ e também no Twitter: http://twitter.com/plinioce
Abraço, bem-vindo à blogosfera, que precisa de gente como você.