O que o profeta ouve e vê é como que ‘o supra-sumo’ da teologia simbólica... Mas o mais importante ainda é ser tocado internamente por Deus, sem palavras ou imagens. Pois é nesse encontro pessoal que se concretiza o conhecimento íntimo de Deus, conhecimento este ‘que só dá a possibilidade de moldar a imagem conforme o Original’.
Edith Stein (Santa Teresa Benedita da Cruz)[1]
Encerramos o texto publicado ontem neste blog, em que tratamos da temática fé e razão, no momento em que introduzíamos a questo da dificuldadede de comunicar o não-saber a que a experiência do sagrado dá acesso. É a partir desse ponto que iniciamos este texto.
Devido às suas peculiaridades, quais sejam, manifestar-se sempre como um mysterium tremendum e fascinans - o sagrado escapa às categorias convencionais de classificação, não sendo possível encontrar termos ou expressões que dêem conta de sua natureza. Daí porque dirá o historiador das religiões Mircea Eliade:
O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades “naturais”. É certo que a linguagem exprime ingenuamente o tremendum, ou a majestas, ou o mysterium fascinans mediante termos tomados de empréstimo ao domínio nautral ou à vida espiritual profana do homem. Mas sabemos que essa terminologia analógica se deve justamente à incapacidade humana de exprimir o ganz andere: a linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos tirados dessa mesma experiência natural.[2]
Essa é, possivelmente, a maior dificuldade em que esbarra os que se aventuram pelos obscuros meandros da experiência radical da fé. Vale a pena citar aqui um trecho do capítulo da biografia de Santa Teresa de Jesus escrita por Elisabeth Reynaud, Teresa de Ávila ou o divino prazer. O capítulo tem por título Dizer o indizível, e nele a autora deixa transparecer a angústia experimentada pela Santa ante a vã tentativa de relatar ao seu confessor uma experiência de manifestação do sagrado ou, na acepção de Mircea Eliade, uma hierofania:
Certo dia, ela implorava a são Pedro que a socorresse, quando teve uma visão: “Vi Jesus Cristo junto a mim.”
Inicialmente, fica amedrontada. Logo entretanto lhe vem sua calma habitual. Mas como anunciar isso a “eles”?
“Que Ele estivesse sempre a meu lado direito”, diz ela sem afetação, “era algo que eu sentia perfeitamente, mas como a visão era sem imagem, não podia ver sob que forma se apresentava.”
O Esposo do Cântico dos cânticos desce em pessoa para dar apoio a sua amante aflita. Ela não o vê, mas Ele está ali. E como o padre Alvarez lhe disse que só poderia continuar a defendê-la se ela não lhe escondesse nada, ela se precipita ao colégio para contar-lhe tudo. A conversa é confiante, de sua parte, mas no mínimo fria da parte do confessor. Ele questiona:
“Sob que forma o vês?
- Eu não O vejo.
- Como podes então saber que é Jesus Cristo?
- Não sei como se dá, mas é impossível deixar de conhecer que Ele está junto de mim: tenho a visão, o sentimento perfeitamente claro.
- Mas acabaste de dizer que não O vês.
- Não vejo Jesus Cristo nem com os olhos do corpo nem com os da alma porque a visão é sem imagem; mas constato Sua presença com maior grau de certeza do que se o visse com meus olhos.
- Não compreendo. Explica-te.
- Imagine um cego ou alguém que esteja nas trevas e que por isso mesmo não pode enxergar uma pessoa junto a si. Mas a comparação é muito precária, pois essa pessoa a que me refiro conta com os demais sentidos. Em meu caso, nada disso acontece. A alma percebe o objeto mediante um conhecimento mais claro que o sol.
- Vês uma claridade ensolarada?
- Não, é uma luz que ilumina a inteligência e a alma sem claridade visível.
- Como podes perceber sem ver nem sentir?
- Percebe-se o objeto mediante um conhecimento tão claro que exclui qualquer dúvida possível. Fica uma certeza, que é o que predomina.
- Não será um efeito de tua própria vontade?
- As faculdades nada têm a ver com o Dom que nos é feito. É como um alimento que aparecesse em nosso estômago sem que o houvéssemos absorvido. Ou uma palavra dita em voz alta e perto da orelha de uma pessoa, que não cuidasse de ouvir. Ou então, imagine alguém que, sem ter aprendido a ler, sem nada ter feito para se instruir, sem ter estudado coisa alguma, se visse na posse da ciência adquirida. Num momento, a alma sabe.
- Referes-te à percepção imediata que há entre pessoas que se amam?
- É o que acontece nesse caso, penso. Os dois amantes, a alma e Deus, fixam o olhar um no outro e assim se entendem mutuamente.”
O encontro dura horas. O confessor força sua penitente até as últimas defesas, e em vez de esgotar a fonte de suas comparações encontra sempre diante de si uma nova imagem por ela proposta para atraí-lo a uma compreensão mais justa, mais firme do que tenta relatar.[3]
Gostaríamos de destacar aqui especialmente dois excertos do trecho citado. O primeiro é aquele em que a mestra espanhola afirma de forma peremptória: Num momento, a alma sabe. Essa frase resume tudo o que se poderia dizer sobre a experiência do sagrado. É um saber que prescinde de adjetivações. Mas a dificuldade de dizê-lo é enorme, quase intransponível. No caso que estamos tomando como exemplo, tanta consciência tem a santa da dificuldade de sua tarefa, que, ao iniciar o relato das Quartas Moradas no Castelo Interior, suplica:
Para começar a falar das quartas moradas, bastante necessário é o que fiz: encomendar-me ao Espírito Santo e suplicar-Lhe que, daqui em diante, fale por mim, a fim de que eu possa dizer algo das moradas restantes de um modo que o entendais. Porque se começa aqui a abordar coisas sobrenaturais, dificílimas de explicar, a não ser que Sua Majestade o faça, como fez quando, há cerca de catorze anos, escrevi acerca do que até então havia entendido.
Tenho hoje, ao que me aprece, um pouco mais de luz no que tange a essas graças que o Senhor concede a algumas almas. Saber dizê-las, no entanto, é algo muito diferente.[4]
Assim, mesmo apesar da dificuldade, ela se arrisca a dizer, a comunicar esse indizível saber. E aqui queremos resgatar o outro excerto. Trata-se do seguinte: O confessor força sua penitente até as últimas defesas, e em vez de esgotar a fonte de suas comparações encontra sempre diante de si uma nova imagem por ela proposta para atraí-lo a uma compreensão mais justa, mais firme do que tenta relatar.
Gostaria de chamar atenção aqui para a forma de linguagem utilizada por Santa Teresa para relatar sua experiência. Ante a total inanidade da linguagem usual, ela apela para comparações, ou seja, resta-lhe como última alternativa valer-se da metáfora. A mestra carmelita usa e abusa da linguagem simbólica, movida pelo único objetivo de dar a entender aos seus interlocutores o que ela quer transmitir: sua experiência de fé. Daí porque ela falará, ao longo de sua vasta obra, de castelos, matrimônio etc. no afã de tentar se fazer entender. Tentando, por exemplo, expressar o que é a união da alma com Deus, escreve:
Equiparemos a união a duas velas de cera ligadas de tal maneira que produzem uma única chama, como se o pavio, a luz e a cera não formassem senão uma unidade. No entanto, depois, é possível separar uma vela da outra – permanecendo então duas velas – e o pavio da cera.
Aqui, todavia, é como se caísse água do céu sobre um rio ou uma fonte, confundindo-se então todas as águas. Já não se sabe o que é água do rio ou água que caiu do céu. É também como se um pequeno arroio se lançasse no mar, não havendo mais meio de recuperá-lo. Ou ainda como se num aposento houvesse janelas por onde entrasse muita luz; penetra dividida no recinto, mas se torna uma só luz.[5]
Note-se o quanto Santa Teresa se vale aí da linguagem simbólica. O símbolo, portanto, se oferece como única possibilidade de transmissão da experiência do sagrado. Daí porque Mircea Eliade afirmará:
O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser.[6]
E aqui vamos desaguar nas religiões. Estribadas nos mitos que lhes conferem os fundamentos – e não há religião sem mito – e tendo como forma precípua de expressão o rito – dramatização dos mitos originários – as religiões constituem sistemas simbólicos por excelência. Posto que fundadas e sustentadas na fé, não é possível religião sem referência à linguagem simbólica, a única que dá conta do seu objeto primordial: a relação com o sagrado. Daí porque cumprem as religiões um papel tão importante, tanto em termos sociais quanto psicológicos, uma vez que, com sua linguagem eminentemente simbólica, permitem ao indivíduo realizar de forma um tanto mais segura sua travessia pela obscura e negra nuvem do não-saber, apanágio da fé, razão pela qual se pode aplicar ao crente a máxima latina como expressão de uma verdade: Habentibus symbolum facilis est transitus, ou seja, para os que possuem o símbolo a travessia é fácil.
Domvasco
[1] Citado por: FELDMAN, Christian. Edith Stein: Judia, Atéia e Monja. Trad. Eurides Avance de Souza; Bauru, SP: EDUSC, 2001, p. 128.
[2] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Traduçao Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 16.
[3] REYNAUD, Elisabeth. Teresa de Ávila ou o divino prazer. Traduçao Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 155.
[4] Idem, p. 470.
[5] JESUS, Tersea de. Castelo Interior. In: Obras Completas. Loyola, São Paulo: 1995, p. 572.
[6] ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos: Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Tradução Sonia Cristina Tamer. – São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 8.
sexta-feira, 24 de abril de 2009
quinta-feira, 23 de abril de 2009
FÉ E RAZÃO
A FÉ E A RAZÃO (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade.
João Paulo II[i]
Entro com mais luz nos mistérios da fé quando renuncio a entendê-los apenas pela inteligência.
Santa Teresa de Jesus
Gostaria de iniciar este texto com uma citação do belo livro de Nikos Kazantzákis intitulado O pobre de Deus, no qual o escritor grego escreve uma história romanceada da vida de São Francisco de Assis:
Um outro dia, encontrei numa gruta um santo. Tinha ficado cego por muito ter chorado. Sua pele, por causa da falta de limpeza e também da santidade, tinha-se tornado toda escamosa. Arrepiam-se meus cabelos só de pensar nisso.
Foi ele que me deu a resposta mais certa, a mais terrível.
- Qual? Quero ouvi-la! – disse-me Francisco, pegando minha mão. Ele tremia.
- Inclinei-me, prosternei-me diante dele e perguntei-lhe: “Santo eremita, vou em busca de Deus; indica-me o caminho”.
- Não existe caminho – respondeu-me, batendo seu bastão na terra. – Não existe caminho.
- Como assim? – disse eu , assustado.
- O que existe é um abismo; salta!
- Um abismo? É este o caminho? – gritei.
- É este mesmo. Todos os caminhos levam à terra; o salto leva a Deus. Salta![ii]
O diálogo acima resume de forma perfeita o aspecto abismal da fé. O sagrado guarda em si, conforme teorizado por Rudolf Otto, duas características fundamentais, intimamente imbricadas: tremendum e fascinans. Tremendum porque o contato radical com o sagrado sempre produz transformações profundas e avassaladoras – e os relatos dos místicos o mostram sobejamente. Fascinans porque o sagrado fascina, atrai, prende o sujeito em sua rede de forma inexorável e inapelável.
Partindo dessas duas características, pode-se iniciar a tentativa de estabelecer alguns possíveis paralelos, talvez, com esse outro instrumento do saber humano: a razão. Isso posto, fica estabelecido que, a partir daqui, se tratará os dois temas, fé e razão, como dois instrumentos distintos através dos quais pode-se aceder à verdade – ou, pelo menos, investigá-la.
Vejamos, inicialmente, as possíveis acepções para ambos os vocábulos, tendo como referência as definições propostas no Dicionário de Termos da Fé:
Razão: (em latim, ratio, derivado de reri, contar, julgar, através do particípio passado ratus, julgado, aprovado). A dupla idéia, de pensamentos e operação calculadora, encontra-se ordinariamente na palavra razão e nas suas derivadas ou afins: raciocínio (pensamento em ação), pro rata (idéia de cálculo). A razão é o modo de pensar próprio do homem, quer se compare com o animal (o homem é um animal racional), quer se compare com as inteligências puramente intuitivas dos puros espíritos, dos anjos (a inteligência humana é uma razão; procede por induções, deduções ou outros processos).[iii]
Fé: (do latim fidere, ter confiança). Resposta do homem ao chamamento de Deus. A fé é a fonte de toda a vida cristã. Na Bíblia, o vocabulário hebraico da fé tem duas dominantes: Aman, que evoca a solidez e a segurança (daí Amen: testemunhamos que é verdade, que é firme), e Batah, que evoca a confiança. Os tradutores gregos, que não dispunham de palavras adequadas, traduziram por várias séries de palavras, evocando umas o conhecimento; outras, a adesão e a confiança. Isto significa que há dois pólos ou dois aspectos na fé: a fé-adesão ou a fé-confiança, a que faz confiança na pessoa que revela (chama-se ainda a fé-conversão, porque, pela adesão, opera uma viragem daquele que crê); e a fé-conhecimento ou a fé-iluminação, que traz conhecimento e luz à alma comprometida com a Palavra de Deus e com a Sua Promessa.[iv]
Os dois conceitos, conforme propostos pelo Dicionário, são-nos bastante convenientes porque explicitam, já de saída, a diferença cabal entre um e outro. Enquanto que a razão remete à idéia de julgamento e, portanto, de análise e ponderação, a fé reporta-se à idéia de confiança. Neste sentido, pode-se afirmar que aquele que crê o faz para além de quaisquer julgamentos racionais. Para aquele que crê, a fé antecede a razão, motivo pelo qual Santo Anselmo afirmará no Proslogion: Neque enim quaero intellegere ut credam, que significa “certamente não procuro entender para crer, mas creio para entender”. Dessa afirmação derivou a máxima Credo ut intelligam, non intelligo ut credam, ou seja, “Creio para compreender, não compreendo para crer”, e Santo Agostinho, por sua vez, afirmará: Credimus enim ut cognoscamus, non cognoscamus ut credamos, isto é, “Cremos para conhecer, não conhecemos para crer”.
Em ambos os casos, tanto na razão quanto na fé, visa-se o saber. No entanto, pensamos, trata-se de saberes distintos. O saber racional é da ordem da lógica, da indução e da dedução. Um saber, diríamos, passível de demonstração, como é o caso dos teoremas físicos e matemáticos. Daí porque mesmo um aparente absurdo é passível de ser matematicamente demonstrável como, por exemplo, a premissa de que as paralelas se encontram no infinito.
Em se tratando da fé, porém, entra-se no domínio de um saber que é de uma outra ordem. O saber da fé não é um saber da ordem do demonstrável, mas do experienciável. É um saber vivido, existencial. A propósito, um estudioso do assunto, o Dr. Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, se valerá do vocábulo Sensciência para referir-se a este saber. Na acepção usada pelo professor, sensciência significa “ciência com sentido”. Aqui, sentido significa algo que foi experienciado pelo sujeito. Daí porque a este sujeito detentor de tal saber será facultado falar dele com autoridade - a autoridade própria dos que sabem. Foi fundamentado nessa premissa que C. G. Jung, ao ser indagado pelo repórter da BBC John Freeman se acreditava em Deus, respondeu: “Eu não acredito, eu sei”.
Este saber, porém, guarda duas características muito peculiares. Primeiro, uma vez que não é demonstrável, restará sempre um quê de incerteza, de dúvida, de não-saber, diríamos, embora essa expressão possa soar aqui paradoxal, posto que estamos tratando do saber. Mas é exatamente isso. É um itinerário que se faz às escuras, tateando, às apalpadelas, sem a menor segurança ou garantia de que seremos, por fim, agraciados com o almejado saber. A dificuldade maior estriba-se, talvez, naquilo que é objeto deste saber, por sua própria natureza inefável, numa palavra: o Sagrado. Talvez nenhum texto seja tão esclarecedor sobre o assunto quanto aquele que se encontra na obra que mereceu o sugestivo título de A Nuvem do Não-saber. Saliente-se que, como o autor escreve numa perspectiva cristã, a este Sagrado é atribuído um nome: Deus. Eis o trecho a que nos referimos:
Não se retraia então, mas trabalhe nele até você sentir o desejo. Pois quando você começa a executá-lo pela primeira vez, tudo quanto ovcê encontra é escuridão, uma espécie de nuvem do “não-saber”; você não pode dizer o que é, exceto que você sente, através de sua vontade, um simples desejo de alcançar Deus. Esta escuridão com a nuvem está sempre entre você e o seu Deus, não importa o que você faça, e é esta que o impede de ver Deus claramente através da luz do entendimento de sua razão, ou ainda que o impede de conhecer Deus na doçura do amor em sua própria afeição. Portanto, comece a descansar nesta escuridão enquanto você puder, gritando sempre por Ele, a quem você ama. Porque, se você vai conhecê-lo ou vê-lo de qualquer maneira, na medida em que isto seja possível aqui, terá que ser sempre nesta nuvem e nesta escuridão. Portanto, se você trabalhar neste exercício com toda a sua atenção como eu mandei, tenho plena confiança que, pela misericórdia de Deus, você atingirá este objetivo.[v]
E já quase no final da obra, afirma o anônimo porém inspirado autor:
Espiritualmente o mesmo é verdade acerca de nossas faculdades espirituais, quando estivermos trabalhando em relação ao conhecimento do próprio Deus. Pois não importa o volume de compreensão espiritual que um homem possa ter quanto ao conhecimento de todas as coisas espirituais criadas, ele jamais poderá chegar, pelo esforço de sua compreensão, ao conhecimento de uma coisa não criada, que nada é a não ser Deus. Mas, pela falha desta compreensão ele pode chegar a esse conhecimento. Pois onde a sua compreensão falha nada mais há além de Deus só; e foi por este motivo que São Dionísio disse: “O saber verdadeiramente divino de Deus é aquele que é conhecido pelo não-saber”.[vi]
Disso decorre a segunda característica desse saber. Uma vez que ele se reporta sempre a um não-saber, e sendo, ao mesmo tempo, da ordem do vivido, gera-se uma dificuldade quase intransponível para os que o experienciam, qual seja, a dificuldade de falar dele. Mas desse assunto tratarei num próximo texto.
Domvasco
[i] João Paulo II. Carta Encíclica FIDES ET RATIO do Sumo Pontífice João Paulo II aos bispos da Igreja Católica sobre as relações entre Fé e Razão. 8ª ed. São Paulo, Paulos, 1998, p. 5.
[ii] Kazantzákis, Nikos. O Pobre de Deus. Trad. Ísis Borges Belchior da Fonseca. – São Paulo: Arx, 2002, p. 32.
[iii] BROSSE, Olivier de La, HENRY, Antonin-Marie, ROUILLARD, Philippe (Direção). Dicionário de Termos da Fé. Porto, Portugal: Editorial Perpétuo Socorro/Aparecida, SP: Editora Santuário, s/d, p. 649.
[iv] Idem, p. 308.
[v] Anônimo. A Nuvem do Não-saber. Tradução Maria de Moraes Barros. 3ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1987, p. 33.
[vi] Idem, p. 167.
João Paulo II[i]
Entro com mais luz nos mistérios da fé quando renuncio a entendê-los apenas pela inteligência.
Santa Teresa de Jesus
Gostaria de iniciar este texto com uma citação do belo livro de Nikos Kazantzákis intitulado O pobre de Deus, no qual o escritor grego escreve uma história romanceada da vida de São Francisco de Assis:
Um outro dia, encontrei numa gruta um santo. Tinha ficado cego por muito ter chorado. Sua pele, por causa da falta de limpeza e também da santidade, tinha-se tornado toda escamosa. Arrepiam-se meus cabelos só de pensar nisso.
Foi ele que me deu a resposta mais certa, a mais terrível.
- Qual? Quero ouvi-la! – disse-me Francisco, pegando minha mão. Ele tremia.
- Inclinei-me, prosternei-me diante dele e perguntei-lhe: “Santo eremita, vou em busca de Deus; indica-me o caminho”.
- Não existe caminho – respondeu-me, batendo seu bastão na terra. – Não existe caminho.
- Como assim? – disse eu , assustado.
- O que existe é um abismo; salta!
- Um abismo? É este o caminho? – gritei.
- É este mesmo. Todos os caminhos levam à terra; o salto leva a Deus. Salta![ii]
O diálogo acima resume de forma perfeita o aspecto abismal da fé. O sagrado guarda em si, conforme teorizado por Rudolf Otto, duas características fundamentais, intimamente imbricadas: tremendum e fascinans. Tremendum porque o contato radical com o sagrado sempre produz transformações profundas e avassaladoras – e os relatos dos místicos o mostram sobejamente. Fascinans porque o sagrado fascina, atrai, prende o sujeito em sua rede de forma inexorável e inapelável.
Partindo dessas duas características, pode-se iniciar a tentativa de estabelecer alguns possíveis paralelos, talvez, com esse outro instrumento do saber humano: a razão. Isso posto, fica estabelecido que, a partir daqui, se tratará os dois temas, fé e razão, como dois instrumentos distintos através dos quais pode-se aceder à verdade – ou, pelo menos, investigá-la.
Vejamos, inicialmente, as possíveis acepções para ambos os vocábulos, tendo como referência as definições propostas no Dicionário de Termos da Fé:
Razão: (em latim, ratio, derivado de reri, contar, julgar, através do particípio passado ratus, julgado, aprovado). A dupla idéia, de pensamentos e operação calculadora, encontra-se ordinariamente na palavra razão e nas suas derivadas ou afins: raciocínio (pensamento em ação), pro rata (idéia de cálculo). A razão é o modo de pensar próprio do homem, quer se compare com o animal (o homem é um animal racional), quer se compare com as inteligências puramente intuitivas dos puros espíritos, dos anjos (a inteligência humana é uma razão; procede por induções, deduções ou outros processos).[iii]
Fé: (do latim fidere, ter confiança). Resposta do homem ao chamamento de Deus. A fé é a fonte de toda a vida cristã. Na Bíblia, o vocabulário hebraico da fé tem duas dominantes: Aman, que evoca a solidez e a segurança (daí Amen: testemunhamos que é verdade, que é firme), e Batah, que evoca a confiança. Os tradutores gregos, que não dispunham de palavras adequadas, traduziram por várias séries de palavras, evocando umas o conhecimento; outras, a adesão e a confiança. Isto significa que há dois pólos ou dois aspectos na fé: a fé-adesão ou a fé-confiança, a que faz confiança na pessoa que revela (chama-se ainda a fé-conversão, porque, pela adesão, opera uma viragem daquele que crê); e a fé-conhecimento ou a fé-iluminação, que traz conhecimento e luz à alma comprometida com a Palavra de Deus e com a Sua Promessa.[iv]
Os dois conceitos, conforme propostos pelo Dicionário, são-nos bastante convenientes porque explicitam, já de saída, a diferença cabal entre um e outro. Enquanto que a razão remete à idéia de julgamento e, portanto, de análise e ponderação, a fé reporta-se à idéia de confiança. Neste sentido, pode-se afirmar que aquele que crê o faz para além de quaisquer julgamentos racionais. Para aquele que crê, a fé antecede a razão, motivo pelo qual Santo Anselmo afirmará no Proslogion: Neque enim quaero intellegere ut credam, que significa “certamente não procuro entender para crer, mas creio para entender”. Dessa afirmação derivou a máxima Credo ut intelligam, non intelligo ut credam, ou seja, “Creio para compreender, não compreendo para crer”, e Santo Agostinho, por sua vez, afirmará: Credimus enim ut cognoscamus, non cognoscamus ut credamos, isto é, “Cremos para conhecer, não conhecemos para crer”.
Em ambos os casos, tanto na razão quanto na fé, visa-se o saber. No entanto, pensamos, trata-se de saberes distintos. O saber racional é da ordem da lógica, da indução e da dedução. Um saber, diríamos, passível de demonstração, como é o caso dos teoremas físicos e matemáticos. Daí porque mesmo um aparente absurdo é passível de ser matematicamente demonstrável como, por exemplo, a premissa de que as paralelas se encontram no infinito.
Em se tratando da fé, porém, entra-se no domínio de um saber que é de uma outra ordem. O saber da fé não é um saber da ordem do demonstrável, mas do experienciável. É um saber vivido, existencial. A propósito, um estudioso do assunto, o Dr. Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, se valerá do vocábulo Sensciência para referir-se a este saber. Na acepção usada pelo professor, sensciência significa “ciência com sentido”. Aqui, sentido significa algo que foi experienciado pelo sujeito. Daí porque a este sujeito detentor de tal saber será facultado falar dele com autoridade - a autoridade própria dos que sabem. Foi fundamentado nessa premissa que C. G. Jung, ao ser indagado pelo repórter da BBC John Freeman se acreditava em Deus, respondeu: “Eu não acredito, eu sei”.
Este saber, porém, guarda duas características muito peculiares. Primeiro, uma vez que não é demonstrável, restará sempre um quê de incerteza, de dúvida, de não-saber, diríamos, embora essa expressão possa soar aqui paradoxal, posto que estamos tratando do saber. Mas é exatamente isso. É um itinerário que se faz às escuras, tateando, às apalpadelas, sem a menor segurança ou garantia de que seremos, por fim, agraciados com o almejado saber. A dificuldade maior estriba-se, talvez, naquilo que é objeto deste saber, por sua própria natureza inefável, numa palavra: o Sagrado. Talvez nenhum texto seja tão esclarecedor sobre o assunto quanto aquele que se encontra na obra que mereceu o sugestivo título de A Nuvem do Não-saber. Saliente-se que, como o autor escreve numa perspectiva cristã, a este Sagrado é atribuído um nome: Deus. Eis o trecho a que nos referimos:
Não se retraia então, mas trabalhe nele até você sentir o desejo. Pois quando você começa a executá-lo pela primeira vez, tudo quanto ovcê encontra é escuridão, uma espécie de nuvem do “não-saber”; você não pode dizer o que é, exceto que você sente, através de sua vontade, um simples desejo de alcançar Deus. Esta escuridão com a nuvem está sempre entre você e o seu Deus, não importa o que você faça, e é esta que o impede de ver Deus claramente através da luz do entendimento de sua razão, ou ainda que o impede de conhecer Deus na doçura do amor em sua própria afeição. Portanto, comece a descansar nesta escuridão enquanto você puder, gritando sempre por Ele, a quem você ama. Porque, se você vai conhecê-lo ou vê-lo de qualquer maneira, na medida em que isto seja possível aqui, terá que ser sempre nesta nuvem e nesta escuridão. Portanto, se você trabalhar neste exercício com toda a sua atenção como eu mandei, tenho plena confiança que, pela misericórdia de Deus, você atingirá este objetivo.[v]
E já quase no final da obra, afirma o anônimo porém inspirado autor:
Espiritualmente o mesmo é verdade acerca de nossas faculdades espirituais, quando estivermos trabalhando em relação ao conhecimento do próprio Deus. Pois não importa o volume de compreensão espiritual que um homem possa ter quanto ao conhecimento de todas as coisas espirituais criadas, ele jamais poderá chegar, pelo esforço de sua compreensão, ao conhecimento de uma coisa não criada, que nada é a não ser Deus. Mas, pela falha desta compreensão ele pode chegar a esse conhecimento. Pois onde a sua compreensão falha nada mais há além de Deus só; e foi por este motivo que São Dionísio disse: “O saber verdadeiramente divino de Deus é aquele que é conhecido pelo não-saber”.[vi]
Disso decorre a segunda característica desse saber. Uma vez que ele se reporta sempre a um não-saber, e sendo, ao mesmo tempo, da ordem do vivido, gera-se uma dificuldade quase intransponível para os que o experienciam, qual seja, a dificuldade de falar dele. Mas desse assunto tratarei num próximo texto.
Domvasco
[i] João Paulo II. Carta Encíclica FIDES ET RATIO do Sumo Pontífice João Paulo II aos bispos da Igreja Católica sobre as relações entre Fé e Razão. 8ª ed. São Paulo, Paulos, 1998, p. 5.
[ii] Kazantzákis, Nikos. O Pobre de Deus. Trad. Ísis Borges Belchior da Fonseca. – São Paulo: Arx, 2002, p. 32.
[iii] BROSSE, Olivier de La, HENRY, Antonin-Marie, ROUILLARD, Philippe (Direção). Dicionário de Termos da Fé. Porto, Portugal: Editorial Perpétuo Socorro/Aparecida, SP: Editora Santuário, s/d, p. 649.
[iv] Idem, p. 308.
[v] Anônimo. A Nuvem do Não-saber. Tradução Maria de Moraes Barros. 3ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1987, p. 33.
[vi] Idem, p. 167.
quarta-feira, 22 de abril de 2009
MUDANÇA DE RELIGIÃO
A escolha de uma nova opção tradicional é algo muito importante, e não se muda de uma tradição a outra como quem troca de toalha de mesa. A passagem de uma forma tradicional a outra envolve muitas questões complexas que devem ser refletidas para podermos consultar profundamente nosso coração e ponderar com cautela sobre isso.
Arthur Shaker
O psicanalista Jorge Forbes foi muito feliz ao propor uma expressão para caracterizar a situação do ser humano contemporâneo: desbussolamento (“Você quer o que deseja?” São Paulo: Best Seler, 2003, p.113). O homem encontra-se desbussolado, ou seja, perdeu a bússola, perdeu o rumo, não tem mais como se orientar. Nesta perda de rumo em que se vê imerso, sem parâmetros seguros que lhe forneçam o necessário substrato sobre o qual pautar sua conduta e metas de vida, tornou-se presa de novidades de última hora e ofertas de felicidade processadas a toque de caixa. As livrarias se tornaram verdadeiros supermercados da felicidade. As prateleiras estão abarrotadas de livros tipo “como fazer para ser feliz”: como ser feliz no casamento, como ser um profissional de sucesso etc. etc. Os títulos são inúmeros. Seria quase impossível elencar todos, tamanha a quantidade de volumes disponíveis. E, mais trágico: vendem. Basta consultar qualquer lista de mais vendidos publicados por revistas e jornais. É trágico e entristecedor constatar a situação de dilaceramento em que as pessoas se encontram em uma época de tanta desorientação que não se consegue nem mesmo qualificá-la. Andaram falando em pós-modernidade, mas o termo não agradou totalmente e hoje é objeto de acaloradas discussões. De qualquer maneira, não resta dúvida: o estado de desorientação é generalizado.
Nessa falência das ideologias, que consequenciaram a perda de parâmetros, as religiões não ficaram incólumes. Especialmente o cristianismo tem sofrido duros golpes. Provavelmente a civilização cristã-ocidental é a que mais tem sofrido as conseqüências do desbussolamento. Assistimos ao esvaziamento dos templos e a um crescente incremento da desconfiança nas autoridades eclesiásticas. Corolário dessa situação, observa-se uma crescente aproximação de cristãos ou ex-cristãos às religiões orientais. Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, assim como em países da Europa, tem aumentado o número de adeptos do Hinduísmo e, especialmente, do Budismo. O motivo da busca por estas religiões parece claro: a insatisfação com ideologias até então aceitas como verdade.
Uma questão, porém, se coloca de forma imperativa: que conseqüências a mudança de religião pode acarretar a uma pessoa? Temos refletido muito sobre esta questão desde que entramos em contato mais estreito com algumas religiões não-cristãs, mais especificamente, com o Hinduísmo e o Budismo. De acordo com o “Atlas da Filiação Religiosa e Indicadores Sociais no Brasil”, baseado no Censo Demográfico de 2000, do IBGE, e elaborado por professores da PUC-Rio e pesquisadores franceses do Institut de Recherche pou le Développement (IRD-Paris) e do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS-Paris), publicado pela editora PUC-Rio, edições Loyola e CNBB, dentre as religiões não-cristãs, o Budismo é a que mais cresce no Brasil, contando, à época do censo, com um total de 214.861 adeptos. Tendo em vista essa cifra, a questão da mudança de religião parece-nos pertinente e merecedora de algumas considerações.
A uma pessoa que muda de religião mas permanece dentro do paradigma cristão, talvez as conseqüências não sejam tão perturbadoras. Para quem muda totalmente de paradigma, porém, a situação parece-nos mais complicada. Passar de uma igreja cristã para o budismo implica uma mudança total de modelo religioso. Isso afeta profundamente o modo de ser e a visão de mundo do indivíduo. A visão de mundo do budismo é muito diferente da cristã e, para quem teve uma formação cristã, ou seja, para quem traz em si arraigadas essas raízes, as conseqüências podem ser nefastas.
O psicólogo suíço Carl Gustav Jung teorizou bastante sobre o assunto da mudança de paradigma religioso, alertando para os riscos psíquicos a que estão sujeitos ocidentais de tradição cristã que assumem uma fé religiosa com características totalmente estranhas à sua, como o Hinduísmo ou o Budismo. A religião, que cumpre a importante função de centrar o indivíduo, conferindo à sua vida um sentido, poderá, no caso de mudança radical de credo, produzir o efeito contrário, gerando confusão e desorientação.
Não estamos com isso defendendo que um cristão não possa e, portanto, não deva, se assim o desejar, se converter ao Budismo ou a qualquer outra religião que seja de sua simpatia. De maneira alguma. No nosso caso, em particular, temos nos aproximado gradativamente do Budismo com muito interesse e simpatia, e só temos colhido bons frutos desta aproximação. Intentamos apenas alertar para o fato de que uma mudança de religião deve ser fruto de um processo, exigindo do indivíduo uma atitude pensada e ponderada, para que não venha a acarretar prejuízos e decepções.
O antropólogo Arthur Shaker, hoje um professante declarado do Budismo, no seu livro “Buddhismo e Christianismo: Esteios e Caminhos” (Petrópolis, RJ: Vozes, 1997), faz uma advertência muito pertinente: “(...) observo que muitas pessoas têm manifestado certo desapontamento com relação ao Christianismo, procurando alternativas para seu caminho espiritual nas tradições orientais, como o Buddhismo. Acreditam alguns que o Buddhismo seja uma via mais simples, talvez menos exigente. Supor que o caminho espiritual de uma Tradição seja sem exigências, regras e métodos é bem o tipo de desejo quimérico atual da indulgência da mente para com seus caprichos e apegos, mentalidade que brota do orgulho do ego em seu culto à sua auto-ilusão, culto incentivado pelas ideologias modernas do self-made man, o ´faço o que eu quero` e o ´eu me fiz por mim mesmo`”.
Assim, em que pese a reflexão proposta neste texto, algumas pessoas, a exemplo do próprio Shaker, conseguiram assumir-se como budista sem problemas. Outros, como o escritor e dramaturgo Paulo César Lopes, afirmam ter conseguido estabelecer uma ponte entre as duas tradições, cristã e budista, valendo-se de ambas como esteio para sua prática religiosa: “A grande maioria de meus encontros com o Buda se deu por meio dos livros. Hoje em dia, toda manhã, antes de iniciar minha meditação, leio um texto da tradição cristã e um da tradição budista. O meu encontro com o budismo desde o começo foi dialógico: o cristianismo me levou ao budismo e o budismo, por sua vez, fez-me descobrir todo um aspecto do cristianismo que eu mal conhecia”.
Que cada um possa ponderar prudentemente, para que sua escolha de uma religião seja uma escolha sensata e não venha a produzir danos ao invés dos pretendidos benefícios.
Domvasco
Arthur Shaker
O psicanalista Jorge Forbes foi muito feliz ao propor uma expressão para caracterizar a situação do ser humano contemporâneo: desbussolamento (“Você quer o que deseja?” São Paulo: Best Seler, 2003, p.113). O homem encontra-se desbussolado, ou seja, perdeu a bússola, perdeu o rumo, não tem mais como se orientar. Nesta perda de rumo em que se vê imerso, sem parâmetros seguros que lhe forneçam o necessário substrato sobre o qual pautar sua conduta e metas de vida, tornou-se presa de novidades de última hora e ofertas de felicidade processadas a toque de caixa. As livrarias se tornaram verdadeiros supermercados da felicidade. As prateleiras estão abarrotadas de livros tipo “como fazer para ser feliz”: como ser feliz no casamento, como ser um profissional de sucesso etc. etc. Os títulos são inúmeros. Seria quase impossível elencar todos, tamanha a quantidade de volumes disponíveis. E, mais trágico: vendem. Basta consultar qualquer lista de mais vendidos publicados por revistas e jornais. É trágico e entristecedor constatar a situação de dilaceramento em que as pessoas se encontram em uma época de tanta desorientação que não se consegue nem mesmo qualificá-la. Andaram falando em pós-modernidade, mas o termo não agradou totalmente e hoje é objeto de acaloradas discussões. De qualquer maneira, não resta dúvida: o estado de desorientação é generalizado.
Nessa falência das ideologias, que consequenciaram a perda de parâmetros, as religiões não ficaram incólumes. Especialmente o cristianismo tem sofrido duros golpes. Provavelmente a civilização cristã-ocidental é a que mais tem sofrido as conseqüências do desbussolamento. Assistimos ao esvaziamento dos templos e a um crescente incremento da desconfiança nas autoridades eclesiásticas. Corolário dessa situação, observa-se uma crescente aproximação de cristãos ou ex-cristãos às religiões orientais. Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, assim como em países da Europa, tem aumentado o número de adeptos do Hinduísmo e, especialmente, do Budismo. O motivo da busca por estas religiões parece claro: a insatisfação com ideologias até então aceitas como verdade.
Uma questão, porém, se coloca de forma imperativa: que conseqüências a mudança de religião pode acarretar a uma pessoa? Temos refletido muito sobre esta questão desde que entramos em contato mais estreito com algumas religiões não-cristãs, mais especificamente, com o Hinduísmo e o Budismo. De acordo com o “Atlas da Filiação Religiosa e Indicadores Sociais no Brasil”, baseado no Censo Demográfico de 2000, do IBGE, e elaborado por professores da PUC-Rio e pesquisadores franceses do Institut de Recherche pou le Développement (IRD-Paris) e do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS-Paris), publicado pela editora PUC-Rio, edições Loyola e CNBB, dentre as religiões não-cristãs, o Budismo é a que mais cresce no Brasil, contando, à época do censo, com um total de 214.861 adeptos. Tendo em vista essa cifra, a questão da mudança de religião parece-nos pertinente e merecedora de algumas considerações.
A uma pessoa que muda de religião mas permanece dentro do paradigma cristão, talvez as conseqüências não sejam tão perturbadoras. Para quem muda totalmente de paradigma, porém, a situação parece-nos mais complicada. Passar de uma igreja cristã para o budismo implica uma mudança total de modelo religioso. Isso afeta profundamente o modo de ser e a visão de mundo do indivíduo. A visão de mundo do budismo é muito diferente da cristã e, para quem teve uma formação cristã, ou seja, para quem traz em si arraigadas essas raízes, as conseqüências podem ser nefastas.
O psicólogo suíço Carl Gustav Jung teorizou bastante sobre o assunto da mudança de paradigma religioso, alertando para os riscos psíquicos a que estão sujeitos ocidentais de tradição cristã que assumem uma fé religiosa com características totalmente estranhas à sua, como o Hinduísmo ou o Budismo. A religião, que cumpre a importante função de centrar o indivíduo, conferindo à sua vida um sentido, poderá, no caso de mudança radical de credo, produzir o efeito contrário, gerando confusão e desorientação.
Não estamos com isso defendendo que um cristão não possa e, portanto, não deva, se assim o desejar, se converter ao Budismo ou a qualquer outra religião que seja de sua simpatia. De maneira alguma. No nosso caso, em particular, temos nos aproximado gradativamente do Budismo com muito interesse e simpatia, e só temos colhido bons frutos desta aproximação. Intentamos apenas alertar para o fato de que uma mudança de religião deve ser fruto de um processo, exigindo do indivíduo uma atitude pensada e ponderada, para que não venha a acarretar prejuízos e decepções.
O antropólogo Arthur Shaker, hoje um professante declarado do Budismo, no seu livro “Buddhismo e Christianismo: Esteios e Caminhos” (Petrópolis, RJ: Vozes, 1997), faz uma advertência muito pertinente: “(...) observo que muitas pessoas têm manifestado certo desapontamento com relação ao Christianismo, procurando alternativas para seu caminho espiritual nas tradições orientais, como o Buddhismo. Acreditam alguns que o Buddhismo seja uma via mais simples, talvez menos exigente. Supor que o caminho espiritual de uma Tradição seja sem exigências, regras e métodos é bem o tipo de desejo quimérico atual da indulgência da mente para com seus caprichos e apegos, mentalidade que brota do orgulho do ego em seu culto à sua auto-ilusão, culto incentivado pelas ideologias modernas do self-made man, o ´faço o que eu quero` e o ´eu me fiz por mim mesmo`”.
Assim, em que pese a reflexão proposta neste texto, algumas pessoas, a exemplo do próprio Shaker, conseguiram assumir-se como budista sem problemas. Outros, como o escritor e dramaturgo Paulo César Lopes, afirmam ter conseguido estabelecer uma ponte entre as duas tradições, cristã e budista, valendo-se de ambas como esteio para sua prática religiosa: “A grande maioria de meus encontros com o Buda se deu por meio dos livros. Hoje em dia, toda manhã, antes de iniciar minha meditação, leio um texto da tradição cristã e um da tradição budista. O meu encontro com o budismo desde o começo foi dialógico: o cristianismo me levou ao budismo e o budismo, por sua vez, fez-me descobrir todo um aspecto do cristianismo que eu mal conhecia”.
Que cada um possa ponderar prudentemente, para que sua escolha de uma religião seja uma escolha sensata e não venha a produzir danos ao invés dos pretendidos benefícios.
Domvasco
terça-feira, 21 de abril de 2009
JUNG E O CONCEITO DE SINCRONICIDADE
Eis-me aqui nesta tarde de terça-feira, 21 de abril, feriado de Tiradentes, apresentando aos amigos o meu blog. O título escolhido para intitulá-lo já diz muito. Trata-se de um dos conceitos mais comentados e, por que não dizer, mais controversos do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. O conceito foi explorado por Jung inicialmente num texto publicado em 1951, A sincronicidade e, posteriormente, num outro de 1952, Sincronicidade: um princípio de conexões acausais.
O pressuposto da Sincronicidade parte do princípio de que não há acasos, ou seja, os acontecimentos que constituem uma história de vida se entrelaçam e tendem a um determinado objetivo. Conclui-se disso que a vida tem um sentido, ou seja, os fatos da vida de uma pessoa não são frutos do acaso. Recordo que certa vez, durante um Encontro Regional de Psicologia, ocorrido em Fortaleza, e do qual fui convidado a participar de uma mesa redonda para falar dos pressupostos da psicologia junguiana, um colega psicanalista me atribuiu a alcunha de "tipo medieval" por ver em tudo um sentido.
Bem, para mim não dá pra ser diferente. Insisto em acreditar que a vida tem um sentido, tende para um objetivo, apesar de, por mais de uma vez, me ter ocorrido a tentação de concluir o contrário. E, afinal, se depois de tudo tivermos que concluir, a contragosto, que estávamos equivocados em atribuir à vida um sentido, bem... então inventaremos um que nos seja conveniente.
Convido aos que assim pensam a dialogarem comigo sobre esta busca do sentido da existência. Devo advertir que, no momento, as questões sem resposta a propósito do tema ainda são muitas, mas como seria insípida a vida não fossem as questões que ela no coloca...
Para concluir, deixo aos amigos um trecho do livro de Milan Kundera, A insustentável leveza do ser, citado por Robert H. Hopcke na Introdução do seu livro Sincronicidade ou por que nada é por acaso (Rio de Janeiro: Record: Nova Era, 1999, p. 11):
É errado, portanto, censurar um romance que é fascinante por suas misteriosas coincidências (...) mas é certo censurar o homem que é cego a essas coincidências em sua vida diária. Pois sendo assim, ele priva sua vida de uma nova dimensão de beleza.
Domvasco
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